É urgente construir casas mais amigas do ambiente, diz Aline Guerreiro, fundadora e CEO do Portal da Construção Sustentável.
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Construção sustentável em Portugal
idealista

Hoje é urgente pensar verde. A sustentabilidade passou a ser uma prioridade na agenda política mundial e já foram traçados vários objetivos neste âmbito – como o de atingir a neutralidade carbónica em 2050. E para o conseguir ainda há muito a fazer no setor da construção que é, aliás, um dos mais poluentes. Desenhar e construir edifícios sustentáveis é o caminho, mas “na verdade [hoje] ninguém, ou quase ninguém, pensa os edifícios dando primazia à sustentabilidade”, revela Aline Guerreiro, arquiteta e fundadora do Portal da Construção Sustentável, em entrevista por escrito ao idealista/news.

Esta é uma luta que Aline Guerreiro enfrenta desde 2010, ano em que decidiu fundar, com dois colegas, o Portal da Construção Sustentável. Trata-se de uma plataforma que nasceu com um propósito bem definido: “Fazer chegar a todos, profissionais da área e consumidor comum, informação atualizada e credível sobre o que é construção sustentável”. Mas cumprir esta missão não tem sido fácil até aqui. “Andamos há mais de dez anos a alumiar a cegos e a gritar a moucos”, costuma dizer Aline Guerreiro, que admite que, há cerca dois anos, começou-se a ver "uma luz ao fundo do túnel”.

 

Construção sustentável
Photo by Iva Rajović on Unsplash

Mas “ainda há muito a fazer, tanto ao nível de mentalidade dos portugueses, como ao nível de legislação”, considera a arquiteta. Construir casas sustentáveis pode representar um aumento do preço, é certo, mas “o que as pessoas não sabem” é que a “grande poupança regista-se ao longo do ciclo de vida do edifício, durante a utilização”, refere a fundadora e CEO do portal. E é aqui que se vão gerar “poupanças significativas (…) ao nível de climatização, iluminação, manutenção e poupança de água”, garante. O problema é que “quem constrói para vender está perfeitamente indiferente ao que se vai passar durante a utilização”, adverte ainda Aline Guerreiro.

“A realidade é só uma: ou mudamos a nossa forma de estar e pensamos e construímos os nossos edifícios (onde passamos cerca de 90% do nosso tempo de vida) de forma mais eficiente em termos de consumo de recursos, ou o custo para mantê-los ambientalmente confortáveis e economicamente viáveis tornar-se-á, com o decorrer do tempo, insuportável”, alerta a CEO do Portal da Construção Sustentável. Olhando para a velocidade da mudança, os objetivos políticos em matéria de sustentabilidade podem estar mesmo comprometidos. “A neutralidade carbónica, por este andar, será muito difícil de alcançar...”, considera.

O Portal da Construção Sustentável nasceu para fazer a diferença e informar todos os portugueses sobre como podemos tornar as nossas casas mais eficientes, sustentáveis e amigas do ambiente. Em entrevista ao idealista/news, Aline Guerreiro explica tudo: as motivações que a levaram a fundar o portal, a informação que divulgam e as iniciativas que organizam, o que é pensar e construir sustentável, o que mudou até aqui e o que tem de mudar no futuro.

 

Casas sustentáveis
Photo by Pickawood on Unsplash

O que está na base da origem do Portal da Construção Sustentável em 2010? 

Em 2010, o setor da construção estava a entrar em profunda crise. Eu, como arquiteta, sempre me interessei pela arquitetura bioclimática e construção sustentável. Decidi apostar num novo modelo de negócio quando percebi que não havia informação organizada nem detalhada sobre sustentabilidade aliada ao setor da construção, nem qualquer base de dados sobre materiais de construção mais sustentáveis. Pelo que decidimos, eu e mais dois colegas, criar o Portal da Construção Sustentável, onde se pode encontrar muita informação, detalhes construtivos, exemplos de projetos, teses científicas e acima de tudo uma base de dados de materiais de construção com princípios de sustentabilidade. A ideia seria divulgar ao máximo formas de construir que tivessem em consideração o ambiente, uma vez que os dados nessa altura já apontavam o setor da construção como um dos mais poluentes. Quisemos fazer a diferença, sendo que hoje, apenas eu continuo do projeto, desde a sua génese.

Qual é a missão do portal? 

A grande e mais importante missão do portal é fazer chegar a todos, profissionais da área e consumidor comum, informação atualizada e credível sobre o que é construção sustentável. Este tema começa a tornar-se banal e nós tentamos sempre fazer a diferença posicionando o nosso trabalho, de forma rigorosa, sobre sustentabilidade na construção. Como exemplo, nunca aceitamos na nossa base de dados de ecoprodutos, materiais provenientes do petróleo, sempre que há alternativas viáveis. É que a realidade é só uma: ou mudamos a nossa forma de estar e pensamos e construímos os nossos edifícios (onde passamos cerca de 90% do nosso tempo de vida) de forma mais eficiente em termos de consumo de recursos, ou o custo para mantê-los ambientalmente confortáveis e economicamente viáveis tornar-se-á, com o decorrer do tempo, insuportável.

O mais curioso é que este tipo de arquitetura existe há mais de cem anos. Antigamente já se construía de forma sustentável. Só que a tecnologia emergente levou o homem a desligar-se desta necessidade, resolvendo o conforto com equipamentos, grandes consumidores de energia e de outros recursos.

Quais os principais desafios que enfrenta a arquitetura e construção em matéria de sustentabilidade? 

Na verdade, toda a arquitetura deveria ser sustentável, não constituído isso um desafio. Mas é, porque na verdade ninguém, ou quase ninguém, pensa os edifícios dando primazia à sustentabilidade. Costumo dizer que a “arquitetura deve ser a disciplina onde a relação entre o homem e a natureza atinge a sua máxima expressão”. Todos os edifícios para o homem viver deveriam proporcionar conforto térmico, conforto acústico, um ambiente ao nível da qualidade do ar melhorado, sem necessidade de lhe acumular equipamentos. O próprio edifício deveria ser autossuficiente de forma a proporcionar todas estas necessidades naturais ao ser humano.

E é possível fazê-lo, construindo bem, com atenção à orientação solar, ao clima, à localização e aos materiais utilizados. E o mais curioso é que este tipo de arquitetura existe há mais de cem anos. Antigamente já se construía de forma sustentável. Só que a tecnologia emergente levou o homem a desligar-se desta necessidade, resolvendo o conforto com equipamentos, grandes consumidores de energia e de outros recursos. Pelo que, o grande desafio será não descurar o conhecimento empírico de outros tempos, aliando-o à tecnologia disponível que temos hoje.

 

Portal da Construção Sustentável em Portugal
Aline Guerreiro, fundadora e CEO do Portal da Construção Sustentável DR

As preocupações sobre construção sustentável mudaram ao longo de dez anos? Como tem sido a experiência até aqui? 

Não tanto quanto gostaria. Costumo também dizer que andamos há mais de dez anos a “alumiar a cegos e a gritar a moucos”. Mas, desde há uns dois anos, começa sim a ver-se “luz ao fundo do túnel”. Mas ainda há muitos portugueses que quando querem contratar um arquiteto reconhecido internacionalmente, pagam muito e bem, a arquitetos que na sua maioria das vezes não olham nada a princípios de sustentabilidade. Quando resolvem ser mais sustentáveis, e nos consultam, acham os preços exorbitantes (quando não são) e acham-se capazes de “desenhar a sua própria casinha”. E depois é o que se vê por aí fora. Muitos edifícios horrendos, descontextualizados, desconfortáveis termicamente e sem qualquer inspiração sustentável. Ainda há muito a fazer. Tanto ao nível de mentalidade dos portugueses, como ao nível de legislação, que permite que se façam alterações aos projetos entregues e licenciados por arquitetos, nos municípios. O que nunca devia acontecer.

Lançámos recentemente uma certificação de produtos com base numa norma internacional – o 'Sustainable Value ISO 14024'. O que quer dizer que qualquer empresa poderá candidatar um dado produto a obter um rótulo ambiental. Só isso irá acrescentar-lhe valor.

Dos projetos de sensibilização para uma construção mais sustentável já levados a cabo pelo portal, quais é que destaca? Porquê? 

Destacamos as visitas mensais a ateliers de arquitetura. Visitamos cerca de 15 gabinetes por mês, onde levamos amostras de todos os produtos e apresentamos os serviços disponíveis no âmbito de uma maior sustentabilidade. Nem imaginam como há gabinetes reconhecidos por este trabalho. Na maioria dos casos não sabiam que existiam estes materiais, ou se os conheciam não era pelas mesmas razões que nós, a sustentabilidade. Conseguem perceber como tirar partido de soluções construtivas e materiais que lhes apresentados e sentem-se muito agradecidos por isso. As aulas abertas em universidades também são muito importantes para a sensibilização de futuros decisores, embora eu considere que só o nosso trabalho não chega. Nas Universidades a sustentabilidade deveria ser intrínseca a qualquer disciplina de arquitetura.

 

Construção sustentável
Freepik

O portal também divulga produtos e serviços neste âmbito. Que critérios são tidos em conta para criar parcerias com empresas? 

Lançámos recentemente uma certificação de produtos com base numa norma internacional – o 'Sustainable Value ISO 14024'. O que quer dizer que qualquer empresa poderá candidatar um dado produto a obter um rótulo ambiental. Só isso irá acrescentar-lhe valor. No entanto temos sempre três princípios base na escolha de materiais e produtos: serem produtos não poluentes e inócuos à saúde humana; não serem provenientes de petróleo (sempre que não se justifique e que haja alternativas) e contribuírem para o desenvolvimento sustentável, através da redução de consumo de recursos, ou outros.

Quantos pedidos de informação/esclarecimento recebem por mês? Mais de particulares ou de empresas? Têm aumentado ao longo dos anos? 

Cada vez mais. É uma constante, tanto particulares como empresas. Tem aumentado gradualmente ao logo dos anos, principalmente nestes dois últimos. O PCS é já uma referência em Portugal para as áreas de Arquitetura e Construção, envolvendo as temáticas ambiental, económica e social numa perspetiva de divulgação e disseminação de conhecimento. Não há mais nenhum portal que informe tanto sobre esta matéria.

Quais são as dúvidas mais comuns que vos chegam? 

Normalmente transformamos as dúvidas mais comuns, em FAQs que publicamos. Mas normalmente o que as pessoas gostam de saber é sobre materiais mais naturais, se são mais caros, como devem isolar um edifício, se é mais caro reabilitar ou construir de novo...

Lançámos no passado dia 5 de junho de 2021 – o Dia Mundial do Ambiente – o podcast Minuto AZUL, que pretende todos os dias uteis, em um minuto, esclarecer este tipo de dúvidas.

 

Portal da Construção Sustentável em Portugal
Participação do Portal da Construção Sustentável numa feira Portal da Construção Sustentável

Que impacto tem ou está a ter a pandemia da Covid-19 na atividade do portal?

Não sentimos. Pelo contrário, como o nosso principal meio de divulgação era online, passou a ter mais procura. Até as visitas aos gabinetes de arquitetura passamos a fazer online, e depois enviamos as amostras solicitadas pelo correio, sendo possível visitar gabinetes também nos Açores e na Madeira. Por outro lado, a oferta em formação também pode aumentar, uma vez que essa formação passou a ser ministrada em ‘webinar’.

Algum tema em destaque que tenha ganho relevância neste período?

A necessidade de ventilar naturalmente um edifício, a iluminação natural e as casas terem um espaço exterior. Acho que foi do que as pessoas sentiram mais falta, quando foram obrigadas a viver “entre quatro paredes”.

A grande questão de quem constrói para vender, que está perfeitamente indiferente ao que se vai passar durante a utilização. Os edifícios deveriam ter uma garantia de 50 anos, dando essa responsabilidade ao construtor.

Que ilações/lições (positivas e negativas) há a retirar da pandemia?

As positivas, foram claramente, a diminuição da poluição e as pessoas aperceberem-se de que podem adotar outros modos de vida menos poluentes (como as reuniões online, evitando deslocações e consumo de recursos). No mundo inteiro, a qualidade do ar apresentou melhoras significativas. Por outro lado, relativamente ao setor da construção, foi mais fácil as pessoas se aperceberem do quão desconfortáveis eram muitas das casas onde viviam confinados. O aumento de depressões e dores de cabeça, podem ser associados a casas desconfortáveis e sem espaços exteriores e mal ventiladas, respetivamente.

 

Casas sustentáveis
Photo by Elifin Realty on Unsplash

Quais são os principais pontos a ter em conta para desenhar e construir uma habitação sustentável?  

É necessário pensar sempre no ciclo de vida de um edifício, contemplando esta questão, desde o seu estudo prévio, até ao final de vida útil (quando o edifício se torna obsoleto). Mas o grande problema aqui é que na execução do projeto e obra, onde possa haver algum incremento no preço. Mas, a grande poupança (e é isso que as pessoas não sabem) regista-se ao longo do ciclo de vida do edifício, durante a utilização. Aqui sim, vão gerar-se poupanças significativas, nomeadamente ao nível de climatização, iluminação, manutenção e poupança de água.

Mas há também a grande questão de quem constrói para vender, que está perfeitamente indiferente ao que se vai passar durante a utilização. Os edifícios deveriam ter uma garantia de 50 anos, dando essa responsabilidade ao construtor. Talvez assim pensassem mais no ciclo de vida e não em construir com os materiais e mão de obra mais barata, só para vender. Muitas das grandes patologias nos edifícios só se verificam ao fim de 10/20 anos.

 

Portal da Construção Sustentável em Portugal
Iniciativa organizada pelo Portal da Construção Sustentável Portal da Construção Sustentável

O Plano de Recuperação e Resiliência prevê investir 610 milhões de euros na melhoria da eficiência energética do parque edificado português. Como vê esta medida? Que outras iniciativas do Governo poderão ser lançadas neste sentido? 

Os incentivos deveriam ser mais adequados à nossa realidade. Não faz sentido obrigar as famílias a fazerem a obra e pagarem tudo antecipadamente, sem saberem se terão direito depois ao incentivo. Penso que seria mais justo, haver uma avaliação antes da escolha dos materiais/produtos, adiantando parte do incentivo. Por outro lado, considero indispensável começar a banir os derivados de petróleo, sempre que há alternativas, o que não acontece no apoio disponível no momento. Se pensamos em descarbonização e no horizonte 2050, não há como fugir e passar a reduzir os plásticos apenas ao indispensável. Mas, claro que estas iniciativas são de louvar e esperar que venham mais... o parque edificado em Portugal necessita de uma transformação muito grande.

Não precisamos de mais edifícios, precisamos de reabilitar energeticamente e ambientalmente o parque existente...

O que esperam para o futuro da construção sustentável em Portugal? Acredita que Portugal vai conseguir atingir a neutralidade carbónica em 2050? 

Espero sinceramente que se pare de construir desenfreadamente. Temos, segundo estatísticas do Instituto Nacional de Estatística, quase duas casas por família em Portugal e inúmeras famílias com carências habitacionais. Não precisamos de mais edifícios, precisamos de reabilitar energeticamente e ambientalmente o parque existente... A neutralidade carbónica, por este andar, será muito difícil de alcançar...

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