Ana Aresta, presidente da ILGA Portugal, em entrevista ao idealista/news.
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Ana Aresta
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Portugal fez avanços em matéria de Direitos LGBTI+ nas últimas décadas, mas, neste momento, encontra-se estagnado em comparação a outros países. Ana Aresta, presidente da ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, diz que é preciso “desbloquear o quanto antes os processos legislativos e governamentais que reforçam a proteção das pessoas LGBTI+ e das suas famílias”. Além disso, garante, “há uma enorme distância entre a proteção nas leis e a (des)proteção na sociedade”, sendo “incontáveis” os relatos de pessoas que são vítimas de discriminação e preconceito por se afirmarem ou serem percecionadas como pessoas LGBTI+. Para a responsável, “não basta proclamar intenções”, uma vez que “a igualdade também precisa de investimento”.

“A proteção dos direitos das pessoas LGBTI+ não pode continuar a ser imputada apenas às associações, sendo urgente que as estruturas públicas tomem a responsabilidade e a iniciativa de assegurar os seus direitos”, refere a responsável ao idealista/news. “Promover contextos de inclusão implica processos contínuos e duradouros no tempo, que envolvam participação de todos os agentes sociais”, acrescenta.

O relatório anual que acompanha o Mapa e índice Arco-Íris 2023 da ILGA Europe diz que “apesar dos intensos ataques anti-LGBTI em vários países, a igualdade ainda avança em toda a Europa”, mas alerta para o aumento do discurso de ódio, violência e assédio contra a comunidade. Ana Aresta considera esta subida “extremamente preocupante”, e poderá estar “relacionada com a persistência de atitudes homofóbicas e transfóbicas em certos setores da sociedade, bem como com a falta de aplicação efetiva das leis antidiscriminação”.

marcha LGBTI Lisboa
Marcha LGBTI+ Lisboa 2023 Getty images

“Não podemos também descolar este aumento com o crescimento dos movimentos políticos de extrema-direita. É crucial não só reforçar a confiança na democracia como combater o discurso de ódio e a desinformação, além de fortalecer os mecanismos de denúncia e proteção das vítimas”, defende.

Nesta entrevista por escrito para o idealista/news, a presidente da ILGA Portugal, analisa, entre outras matérias, as políticas e programas em vigor para combater a homofobia e a transfobia no país; o que falta fazer, nomeadamente, a nível legislativo, para fortalecer os direitos LGBTI+; até estratégias (também educacionais) para aumentar a consciencialização e a aceitação da diversidade de género e orientação sexual na sociedade portuguesa.

Portugal voltou a perder posições no ranking anual da ILGA-Europe. Por que é que o país não está a avançar em matéria de direitos LGBTI?

De facto, Portugal continua na trajetória iniciada no ano passado e voltou a descer no ranking da ILGA-Europe, passando de 9ª para 11.º lugar. O nosso país não ganhou nem perdeu pontos percentuais no índice, continuando estagnado com 62%, e esta estagnação no avanço nos Direitos LGBTI+ levou a que outros países subissem posições com desenvolvimentos na sua legislação, atirando Portugal para fora do top 10. A não publicação do Plano de Ação do Governo para o Combate à Discriminação em razão da Orientação Sexual, Identidade e Expressão de Género, e Características Sexuais contribuiu também para esta descida, tendo já sido um fator determinante para Portugal cair 5% no ranking no ano passado.

Há que desbloquear o quanto antes os processos legislativos e governamentais que reforçam a proteção das pessoas LGBTI+ e das suas famílias, e a verdade é que estão já em discussão na Assembleia da República várias iniciativas legislativas que podem catapultar de novo Portugal para o topo deste ranking, nomeadamente a proibição das chamadas ‘práticas de conversão’ e o aumento de mecanismos para a proteção da autodeterminação da identidade e expressão de género.

Há que desbloquear o quanto antes os processos legislativos e governamentais que reforçam a proteção das pessoas LGBTI+ e das suas famílias

Atualmente, quais são as políticas e programas em vigor para combater a homofobia e a transfobia em Portugal? O que falta fazer, nomeadamente, a nível legislativo, para fortalecer os direitos LGBTI no país?

Felizmente, a lei portuguesa foi bastante reforçada nos últimos anos em matéria de proteção das pessoas LGBTI+ e das suas famílias, desde o Código do Trabalho ao Código Penal e, claro, às leis que garantem contextos de igualdade em matéria de parentalidade ou que reconhecem a autodeterminação da identidade de género e a proteção das características sexuais de todas as pessoas. No entanto, há ainda muito por fazer, mais ainda quando se cruzam vários contextos de discriminação. Para além do que referimos acima, é urgente o reconhecimento legal do nome e marcador de género para pessoas migrantes e refugiadas ou requerentes de asilo nos documentos emitidos pelo Estado português, a introdução nas questões de asilo à menção expressa de todos os fundamentos associados à orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais, promover o reconhecimento legal das identidades não-binárias e alargar o acesso à gestação de substituição a todas as pessoas independentemente do seu género ou orientação sexual e, claro, uma lei anti-discriminação inclusiva e transversal.

marcha LGBTI Lisboa
Marcha LGBTI+ Lisboa 2023 Getty images

Para além de tudo o que ainda falta fazer do ponto de vista legislativo, há uma enorme distância entre a proteção nas leis e a (des)proteção na sociedade. Todos os dias, um número incontável de pessoas são vítimas de discriminação e preconceito por se afirmarem ou serem percecionadas como pessoas LGBTI+. Esta situação é particularmente grave em períodos de crise social como a que vivemos. Neste contexto, a proteção dos direitos das pessoas LGBTI+ não pode continuar a ser imputada apenas às associações, sendo urgente que as estruturas públicas tomem a responsabilidade e a iniciativa de assegurar os seus direitos. Por isso, a ILGA Portugal e muitas associações que trabalham nesta área têm advogado por mais e melhores respostas nas áreas da Emergência Social e da Saúde, principalmente no que diz respeito às pessoas trans e intersexo, assim como o reforço dos programas e das verbas alocadas à formação para pessoas docentes, forças de segurança e demais profissionais na área dos serviços em matéria LGBTI+, de forma a conseguimos erradicar a discriminação dos próprios serviços públicos. Na área do trabalho, faltam processos de empoderamento que garantam a igualdade salarial e que também garantam igualdade no acesso a cargo de liderança.

Todos os dias, um número incontável de pessoas são vítimas de discriminação e preconceito por se afirmarem ou serem percecionadas como pessoas LGBTI+

Como se pode aumentar a consciencialização e a aceitação da diversidade de género e orientação sexual na sociedade portuguesa?

Primeiro, é importante que percebamos que nunca nenhum direito está totalmente garantido, até porque as configurações políticas mudam a cada ciclo governativo e sabemos, pelo contexto de outros países europeus, que os Direitos Humanos das pessoas LGBTI+ estão cada vez mais ameaçados. Promover contextos de inclusão implica processos contínuos e duradouros no tempo, que envolvam participação de todos os agentes sociais. Também devemos encorajar a representação positiva de pessoas LGBTI+ nos meios de comunicação e promover a participação da sociedade civil na defesa dos direitos LGBTI+. E claro, é importante investir na formação de profissionais e em campanhas de sensibilização em larga escala. Além disso, é fundamental incluir a educação sobre diversidade de género e orientação sexual nos currículos escolares.

Que estratégias educacionais, por exemplo, podem ser implementadas nas escolas para promover a inclusão e combater a discriminação contra indivíduos LGBTI?

Este ano, o I Fórum Nacional IDAHOT – Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia, Transfobia e Interfobia – promovido pelo Governo português teve precisamente como tema o “Direito a Ser nas Escolas”. O primeiro evento nacional sobre este tema ser sobre educação é de facto muito significativo, porque aponta para uma convergência intergovernamental e interassociativa que compreende que o futuro da garantia de direitos humanos nas leis e na prática reside grandemente na aposta educativa.

Como referi, é essencial incluir nos currículos escolares conteúdos que abordem a diversidade de género e orientação sexual. Isso pode ser feito de forma interdisciplinar, por meio de disciplinas como educação para a cidadania, história, ciências sociais e educação para a saúde.

As crianças e jovens devem aprender sobre os direitos humanos, a importância da igualdade e o respeito pela diversidade, incluindo a orientação sexual e a identidade e expressão de género.

marcha LGBTI Lisboa
Marcha LGBTI+ Lisboa 2023 Getty images

É também fundamental garantir formação para o pessoal docente e não docente nesta área, já que ajudará as comunidades escolares a compreender melhor as necessidades e desafios de estudantes LGBTI+, a criar ambientes inclusivos e a abordar as vivências das pessoas LGBTI+ de forma adequada e sem preconceito ou discriminação. Sobre isso, as escolas devem implementar políticas claras contra a discriminação e o bullying homofóbico e transfóbico. Isso inclui a adoção de medidas preventivas, a criação de canais de denúncia confidenciais e a sensibilização da comunidade escolar sobre os direitos LGBTI+. Sabemos que o Governo português está neste momento a trabalhar em orientações promotoras da segurança e proteção de crianças e jovens LGBTI+, dirigidas às escolas e aos profissionais de educação.

As escolas devem implementar políticas claras contra a discriminação e o bullying homofóbico e transfóbico

É importante que todas essas estratégias sejam implementadas de forma abrangente, envolvendo não apenas estudantes LGBTI+, mas também as pessoas educadoras, a comunidade escolar e as famílias.

O relatório da ILGA Europa concluiu que se tem observado um aumento da violência e assédio contra a comunidade LGBTI. O que é que pode estar na origem desta subida?

O aumento da violência e do assédio contra a comunidade LGBTI+ é extremamente preocupante. Essa subida pode estar relacionada com a persistência de atitudes homofóbicas e transfóbicas em certos setores da sociedade, bem como com a falta de aplicação efetiva das leis antidiscriminação. Não podemos também descolar este aumento com o crescimento dos movimentos políticos de extrema-direita. É crucial não só reforçar a confiança na democracia como combater o discurso de ódio e a desinformação, além de fortalecer os mecanismos de denúncia e proteção das vítimas. Devemos trabalhar em conjunto com as autoridades competentes, organizações da sociedade civil e a comunidade em geral para prevenir e combater esses atos de violência e assédio.

Como podem ser promovidos espaços seguros e inclusivos para a comunidade LGBTI em locais de trabalho, instituições públicas e espaços públicos em geral?

É importante sensibilizar as empresas e instituições públicas sobre a importância da diversidade e da inclusão das pessoas LGBTI+ e fornecer orientações claras sobre como criar ambientes seguros, nomeadamente a implementação de políticas de não-discriminação, formação de pessoas funcionárias e colaboradoras e a criação de canais de denúncia confidenciais. A ILGA Portugal defende que a aposta em políticas públicas e o reforço das verbas no Orçamento do Estado é fundamental para garantir contextos de inclusão e segurança. Não basta proclamar intenções. A Igualdade também precisa de investimento.

É importante sensibilizar as empresas e instituições públicas sobre a importância da diversidade e da inclusão das pessoas LGBTI+ e fornecer orientações claras sobre como criar ambientes seguros

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Marcha LGBTI+ Lisboa 2023 Getty images


No caso das entidades patronais, sabemos que as pessoas LGBTI+ enfrentam riscos específicos e acrescidos no seu local de trabalho, sendo vítimas de discriminação e atitudes intolerantes, o que põe em risco o seu bem-estar e a sua segurança.  Há que legislar e consciencializar quem emprega sobre estes riscos, providenciando-lhes as ferramentas para que possam combater as situações de discriminação LGBTI+ fóbica dentro das suas organizações.

Quais são os principais desafios que a comunidade LGBTI+ ainda enfrenta?

Além da violência e do assédio, os desafios têm-se centrado na discriminação no acesso a serviços de saúde, no estigma enfrentado por pessoas trans e intersexo, na falta de reconhecimento legal da identidade de género de pessoas migrantes e a falta de apoio adequado para jovens LGBTI+ em situações de risco. Também é necessário combater as desigualdades socioeconómicas que afetam desproporcionalmente as pessoas LGBTI+. É fundamental abordar esses desafios de forma holística, trabalhando em conjunto com a comunidade, a sociedade civil e as instituições públicas.

É também muito desafiante o combate ao discurso de ódio que é muito frequente nas redes sociais, onde as pessoas agressoras estão muitas vezes protegidas sob o anonimato, e que tem consequências muito graves, dada a sua extrema violência, na segurança física e emocional das pessoas LGBTI+. Este combate não pode dissociar-se do combate ao ressurgimento de ideais políticos extremistas de cariz altamente fóbico para com as pessoas LGBTI+, amplamente antidemocrático e misógino.

marcha LGBTI Lisboa
Marcha LGBTI+ Lisboa 2023 Getty images

Para além deste discurso de ódio frequente nas redes sociais, há também uma falta de informação e confiança sobre o que fazer diante de crimes LGBTIfóbicos na internet e fora dela.

Como está a correr a preparação do Euro Pride 2025? O que se pode esperar e quais os grandes desafios?

O EuroPride é o maior evento de celebração do Orgulho das identidades LGBTI+ na Europa, pelo que tem uma componente de grande responsabilidade. A candidatura de Lisboa, apresentada em conjunto pelas associações ILGA Portugal, Variações, rede ex aequo e AMPLOS, foi eleita por maioria pelas entidades associadas da EPOA – European Pride Organizers Association e marca também uma mudança de paradigma naquilo que tem sido até agora a organização da celebração do Orgulho pan-europeia, em que um conjunto de associações locais une esforços desde o início para apresentar um projeto coeso que agregue as diferentes visões, formas de estar e de viver das nossas comunidades. Será um grande desafio e, por isso, a coordenação efetiva e a colaboração entre todas as partes envolvidas são essenciais para o sucesso do EuroPride 2025. Novidades em breve!

Lisboa está preparada para receber um evento desta relevância? Qual a importância deste evento para a cidade e para o país?

Apesar de haver sempre resistências sociais (e algumas políticas), Lisboa tem demonstrado ser uma cidade acolhedora que tem já a tradição de abraçar a diversidade e vários eventos LGBTI+, nomeadamente o Arraial Lisboa Pride, que terá este ano a sua 25.ª edição. Também Portugal tem visto o número de ações de visibilidade das pessoas LGBTI+ crescer ao longo dos anos, com um número recorde de mais de vinte Marchas do Orgulho LGBTI+ por todo o país este ano. Receber um evento tão grande e mediático EuroPride em 2025 poderá ser um barómetro interessante para medir visões e sensibilidades sociais em matéria de direitos e visibilidade das pessoas LGBTI+. Estamos confiantes de que o impacto do evento será muito positivo para o país.

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