Português ganha um dos principais prémios internacionais de fotografia a contar histórias sobre como vivem alguns (muitos) lisboetas.
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A "Nova Lisboa": pedaços da habitação na capital em forma de retratos
Retratos do projeto "Nova Lisboa" Gonçalo Fonseca

Antes de chegar a pandemia, a crise habitacional já se fazia sentir em Lisboa. E Gonçalo Fonseca decidiu fazer o registo de como muitos estavam (e estão) a viver na capital, com dificuldades no acesso a uma habitação digna. As histórias contadas em forma de imagens valeram-lhe o prémio Leica Oskar Barnack Award 2020, um dos mais prestigiados concursos de fotografia a nível mundial. Foi distinguido na categoria “newcomer” (novos talentos) pelo trabalho “Nova Lisboa”, um trabalho que explora o conceito de casa, o medo e inseguranças, e que acompanha a vida das famílias mais vulneráveis e afetadas pela gentrificação da capital. Em entrevista ao idealista/news, o fotógrafo fala deste projeto e da vontade de contar histórias através da sua lente.

A paixão pela fotografia começou desde cedo, quando “viu uma máquina analógica pela primeira vez”. Tinha 16 anos e desde aí nunca mais parou. Deu os primeiros passos no fotojornalismo em 2015/2016, em Barcelona, onde teve a sua primeira experiência a trabalhar no estrangeiro. Seguiu para a China em 2017, onde se dedicou a fotografar a solidão e a procura de amor numa mega-cidade, partindo depois para a Índia, em 2018, onde esteve meio ano a investigar as complexas redes de tráfico de órgãos. No regresso a casa, e depois de estar bastante tempo fora, houve espaço para pensar nas mudanças que estavam a acontecer na cidade de Lisboa, e dedicou-se ao “Nova Lisboa”, explorando os cenários de crise habitacional, dando atenção a um problema que, na sua opinião, é global.

Este trabalho começou em 2019, e foi terminado já este ano, em plena pandemia. Algumas das famílias abriram logo as suas portas, outras precisaram de tempo e de ganhar confiança para partilhar com Gonçalo a sua realidade. O projeto valeu-lhe o prémio, e a sensação que fica, diz, é a de “dever cumprido”, esperando que as pessoas que têm vindo a partilhar a sua vida com ele se sintam representadas e orgulhosas desta distinção.

Da paixão pela fotografia à vontade de contar histórias. O fotógrafo português conta detalhes sobre o seu percurso e projetos numa entrevista ao idealista/news que agora reproduzímos na íntegra.

A "Nova Lisboa": pedaços da habitação na capital em forma de retratos
Gonçalo Fonseca

Antes de mais pedir-te para nos contares um pouco da tua história. A fotografia foi desde sempre uma paixão? Trabalhas desde sempre nesta área?

A fotografia entrou na minha vida de uma forma um bocado inesperada aos 16 anos. Quando vi uma máquina analógica pela primeira vez, apaixonei-me pela sua forma mecânica e como o mundo ficava diferente quando olhava pelo visor. Soube nesse momento que tinha de ter um deste objetos mágicos que transformavam a realidade.

Na altura de ir para a universidade, não tive a coragem de estudar só fotografia, por isso fiz uma licenciatura em Jornalismo e fui aprendendo a fotografar com tentativa e erro, a estragar muitos rolos.

Desde 2017 que trabalhas em projetos de longo prazo não só em Portugal, mas também na China e Índia? Podes falar-nos um pouco sobre este projetos “fora de portas”?

Em 2015-2016 fiz uma pós-graduação em Fotojornalismo em Barcelona e tive aí a minha primeira experiência a fotografar no estrangeiro. Para o meu trabalho final de curso fui para Melilha, um território espanhol no Norte de África, um dos pontos de entrada nas rotas migratórias. Em 2017 comecei a minha carreira profissional em Portugal com um trabalho sobre a descriminalização das drogas, que teve bastante sucesso e foi publicado pela TIME entre outros. Nesse ano fui à China durante dois meses. Em Shanghai dediquei-me a fotografar a solidão e a procura de amor numa mega-cidade. Fotografei aulas de como arranjar namorado, empresas de match-making para milionários e documentei a vida de mulheres com imenso sucesso, mas que não conseguiam encontrar um parceiro. Na sociedade chinesa há uma pressão brutal por parte da família e da sociedade para que as mulheres se casem antes dos 24 anos. Acabei por conseguir publicar bastante este trabalho no Washington Post e em vários jornais europeus.

Em 2018, consegui poupar dinheiro suficiente para me lançar num novo projeto na Ásia, desta vez sobre o tráfico de órgãos na Índia. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a cada hora faz-se um transplante ilegal de órgãos. Na Índia, os problemas renais são cada vez mais comuns e todos os anos são precisos mais de 200 mil rins. Esta procura criou um mercado negro que explora e vitimiza as pessoas mais vulneráveis daquele país. Mal descobri que esta situação era uma realidade, comprei um voo para Delhi. Acabei por ficar meio ano e investigar estas redes complexas de tráfico.

Como é que surgiu a ideia de fazer um trabalho dedicado à crise da habitação na cidade de Lisboa? Quais foram as motivações?

Surgiu naturalmente no regresso a casa. Estive bastante tempo fora e quando voltei tinha uma vontade grande de tratar temas no meu país, de não depender de tradutores e de poder ter uma relação mais autêntica com as pessoas que fotografo. O facto de estar algum tempo fora deu-me espaço para pensar nas mudanças que estavam a acontecer em Lisboa , os seus efeitos, e começar a pensar numa forma de as contar.

A "Nova Lisboa": pedaços da habitação na capital em forma de retratos
Uma das fotos do "Nova Lisboa" Gonçalo Fonseca

Quais foram os locais que fotografaste?

Em todo o lado praticamente. Em Benfica, Marvila, Chelas, Ajuda, Campo de Ourique, Santa Maria Maior, Olivais... É uma longa lista.

Foi fácil “chegar” às histórias que retratas neste projeto? Houve um trabalho de investigação...

Nunca é fácil. Mas contei com o apoio da Habita, uma organização de voluntários que lutam pelo direito à habitação na cidade de Lisboa. Eles fazem um trabalho fundamental, e sem eles seria tudo muito mais complicado. Muitos dos casos resultam também da minha própria investigação. Algumas famílias abriram-me logo as portas, outras demoraram algum tempo a ganhar a confiança e a perceber a importância do trabalho.

Há alguma história, em particular, que gostasses de destacar?

Gostava de destacar a história da Maria Pereira, agora com 79 anos, que sofreu uma injustiça por parte do seu senhorio, e acabou por ficar a dormir na rua. A Maria tem vários problemas de saúde e conta com o apoio de um dos filhos, que vive no Luxemburgo, país onde vai regularmente fazer tratamentos. Em outubro de 2019, voltou para Portugal, depois de ter estado dois meses fora e encontrou a fechadura da casa onde viveu toda a sua vida na Graça, mudada.

Após anos de bullying, o senhorio decidiu unilateralmente despejá-la. Atualmente ela está a viver no Luxemburgo, muito fragilizada pelas semanas que viveu na rua. O caso está na justiça, mas é claro que a Maria Pereira nunca mais vai poder voltar à sua casa. A nossa cidade está cheia de injustiças destas, que ficam escondidas e não são contadas.

O “Nova Lisboa” acabou por ganhar uma distinção. Qual a sensação e importância de receber um prémio como este?

A sensação é de dever cumprido. Apenas espero que as pessoas que têm vindo a partilhar a sua vida comigo se sintam representadas e orgulhosas desta distinção, que é nossa. A esperança é que prémios com este renome tragam visibilidade e atenção a um problema que é dramático e global.

Há novos projetos em vista? Se sim, serão dedicados a esta temática da habitação?

Já estou de volta ao trabalho e vão ter notícias minhas em breve. Entretanto podem acompanhar o meu trabalho no instagram.

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