Estivemos à conversa com a terapeuta Ana Teixeira que nos partilhou o que significa crescer com autonomia para os pais e crianças.
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terapia ocupacional pediátrica
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Já ouviste falar na terapia ocupacional pediátrica? Este termo pode soar técnico, mas está muito mais presente na vida das crianças do que imaginas. A terapia ocupacional ajuda-as a crescer com mais autonomia, confiança e equilíbrio, desde aprender a vestirem-se sozinhas, a brincarem com mais coordenação ou lidarem melhor com as emoções. O foco está em apoiar o desenvolvimento natural da criança, respeitando o seu ritmo e transformando os desafios do dia-a-dia em oportunidades de aprendizagem.

Para perceber melhor como tudo isto acontece na prática, e que comportamentos poderemos adotar nas nossas casas, falámos com Ana Teixeira, terapeuta ocupacional e fundadora da SerCri, um projeto dedicado ao desenvolvimento infantil. 

Nesta conversa, a Ana explica de forma simples o que é a terapia ocupacional pediátrica, como pode fazer diferença nas rotinas das famílias e de que forma as experiências da infância moldam os adultos que as crianças um dia se tornarão.

Como explicaria, de forma simples, o que é a terapia ocupacional pediátrica e qual o seu principal objetivo no desenvolvimento das crianças? Terá algum impacto nos adultos que vão ser?

A terapia ocupacional ajuda as pessoas a serem mais autónomas e participativas nas atividades do dia a dia. No caso das crianças, o objetivo é que consigam fazer sozinhas as tarefas que fazem parte da sua rotina, como brincar, vestir-se, comer, dormir ou participar nas atividades da escola. O terapeuta ocupacional pediátrico observa o que está a dificultar essas tarefas, por exemplo, se a criança tem dificuldade em concentrar-se, coordenar os movimentos ou adaptar-se a certos ambientes, e cria um plano à medida das suas necessidades, envolvendo também a família e a escola.

A ideia é ajudar a criança a desenvolver as suas capacidades de forma natural e divertida, ganhando confiança e independência ao longo do processo. E isto faz uma grande diferença no futuro: quanto mais cedo a ajuda chega, maior é o impacto positivo na vida adulta. Crianças que aprendem a lidar melhor com os desafios tornam-se adultos mais seguros, autónomos e preparados para enfrentar o mundo.

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Na sua experiência, quais são os desafios mais comuns que as crianças enfrentam hoje em termos de motricidade, concentração ou regulação emocional? Que recomendações daria às famílias e profissionais de ensino e saúde que trabalham com crianças?

Ao nível da motricidade, é comum surgirem dificuldades na motricidade fina, como a preensão do lápis, a coordenação olho-mão ou a desmotivação para desenhar e pintar, e também na motricidade global, com desafios na coordenação, no equilíbrio ou no desempenho de atividades desportivas.

É igualmente frequente procurarem-nos quando existem dificuldades de atenção, impulsividade ou agitação motora, que tendem a ter maior impacto no desempenho académico. Já os desafios na regulação emocional, como birras frequentes ou episódios de descontrolo, podem muitas vezes estar relacionados com alterações no processamento sensorial, seja uma maior ou menor reatividade aos estímulos do ambiente (sons, toques, movimentos, cheiros, luz, etc.).

Recomendo que famílias, professores e profissionais de saúde estejam atentos aos sinais de dificuldade e ao comportamento de cada criança, acolhendo as suas emoções com empatia. Quando se nota que há impacto funcional nas tarefas diárias, deve-se procurar uma avaliação de um terapeuta ocupacional. Um olhar técnico e compreensivo pode clarificar a origem das dificuldades e orientar estratégias para apoiar o desenvolvimento da criança, tanto em casa como na escola.

 

Quando falamos em adaptar espaços, como é que uma casa pode ser transformada para apoiar melhor o desenvolvimento da criança? Significa um gasto significativo no orçamento familiar?

Quando falamos de crianças com desafios no processamento sensorial, é importante que o ambiente doméstico seja estruturado de forma a apoiar a sua regulação e o seu desenvolvimento. Isso pode passar por reduzir estímulos, optando por cores neutras e suaves, diminuindo o número de objetos visíveis, e criar áreas de descanso, como uma pequena tenda, um pufe ou uma cadeira de baloiço.

Noutros casos, há crianças que beneficiam de maior intensidade de estímulos. Nestes, pode ser útil incluir em casa um mini-trampolim, uma cadeira rotatória, um baloiço no vão da porta ou caixas com diferentes texturas (feijões, massas, arroz).

A maioria destas adaptações não implica gastos elevados: muitos materiais podem ser adquiridos em lojas comuns de desporto, decoração ou até reaproveitados com criatividade. Mais importante do que o valor do material é a intenção por detrás da adaptação: criar ambientes que promovam a regulação, a calma e a exploração segura.

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E no caso das escolas? Que tipo de alterações simples e práticas podem ser feitas para estimular a autonomia, a segurança e o desenvolvimento motor das crianças no dia a dia?

Uma alteração essencial seria o enriquecimento dos recreios escolares. Nos últimos anos, tem-se verificado uma redução das oportunidades de movimento e de desafio motor, muitas vezes devido à preocupação excessiva com a segurança. Isso limita o desenvolvimento das competências sensório-motoras. É cada vez mais raro ver baloiços, escorregas maiores ou contacto com elementos naturais como areia, terra, erva ou árvores, substituídos por pisos uniformes de cimento ou cortiça.

Em paralelo, muitas salas de aula mantêm uma organização semelhante à de há décadas, com pouco espaço para o movimento e para as diferenças individuais. A evidência científica mostra que o movimento e a variedade de experiências sensoriais são fundamentais para a aprendizagem e a autorregulação. 

As sugestões práticas incluem disponibilizar diferentes opções de assentos (cadeiras, bolas de pilates, bancos altos, tapetes para sentar no chão), criar uma zona calma na sala, incluir um pequeno “kit sensorial” na sala com materiais táteis, fidgets ou bandas elásticas. Até mesmo programar pequenas pausas de movimento para alongamentos ou jogos rápidos de movimento ou usar suportes visuais (imagens, listas ou calendários) para ajudar na organização das rotinas. Estas adaptações favorecem todos os alunos, não apenas daqueles que apresentam dificuldades.

 

Também se pode aplicar aos espaços públicos, por exemplo, bibliotecas, parques, centros comerciais?

Pode e deve aplicar-se. Todos os contextos podem ser adaptados para promover a autonomia e a regulação das crianças. Por exemplo, em centros comerciais ou bibliotecas, podem existir pequenos espaços tranquilos ou “salas de pausa” destinadas a crianças que necessitem de acalmar-se ou regular-se. Estes espaços devem ter iluminação suave, pouco ruído, estímulos visuais reduzidos e materiais como cadeiras de baloiço, pufes ou brinquedos sensoriais simples.

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Acredita que as instituições de ensino estão mais conscientes da importância da terapia ocupacional?

Sim, felizmente existe um maior reconhecimento do papel da Terapia Ocupacional nas escolas. Muitos professores e educadores já conseguem identificar sinais de alerta e encaminhar adequadamente as crianças. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. É necessária uma mudança de paradigma, isto é, passar de um modelo centrado apenas na intervenção individual da criança para um modelo que envolva a adaptação dos contextos — recreios, salas de aula, refeitórios — e a capacitação dos adultos que interagem com as crianças.

A formação e partilha de estratégias com professores, educadores e auxiliares é essencial para criar ambientes que favoreçam o desempenho, a atenção e o bem-estar das crianças, facilitando também o trabalho dos profissionais de ensino. Embora já existam projetos nesta linha, as limitações orçamentais e a falta de recursos humanos ainda são desafios reais à implementação sistemática destas práticas.

 

Muitos de nós associamos o “brincar” apenas ao lazer. Como explica a importância do brincar no desenvolvimento das capacidades motoras e cognitivas das crianças? E que tipo de jogo é mais favorável?

Segundo a Convenção dos Direitos da Criança, o brincar é um direito fundamental. É muito mais do que lazer, é o meio natural através do qual a criança explora o mundo, experimenta papéis, aprende regras sociais e desenvolve competências motoras e cognitivas. 

Brincar deve ser uma atividade escolhida e dirigida pela criança, sem imposição de objetivos ou regras dos adultos. O papel do adulto é observar, participar quando convidado e garantir segurança física e emocional, sem interferir no curso natural da brincadeira. Quando a brincadeira é genuína e prazerosa, o impacto no desenvolvimento é profundo. É nesse espaço livre que a criança exercita a criatividade, a resolução de problemas, o controlo emocional e a coordenação motora.

O melhor “jogo” é, portanto, o tempo e o espaço que permitam à criança escolher e criar as suas próprias brincadeiras, sem pressa e sem julgamento.

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A SerCri nasceu da sua prática clínica. Que papel tem a marca hoje como ponte entre terapeutas, pais e educadores?

A SerCri desempenha um papel importante ao facilitar o acesso a materiais e recursos que promovem o desenvolvimento infantil, tanto em casa como nas escolas. Os produtos vão desde mordedores e fidgets, que ajudam na autorregulação e concentração, a jogos que estimulam a motricidade fina, adaptadores para lápis, brinquedos sensoriais e muito mais.

O objetivo é criar uma ponte entre o conhecimento técnico e as necessidades práticas das famílias e educadores, permitindo que as estratégias sugeridas em terapia sejam facilmente integradas no quotidiano das crianças.

 

Como é que os pais devem escolher os melhores brinquedos para os seus filhos? E os livros? Como perceber qual o valor terapêutico destes?

É importante que as crianças tenham acesso a brinquedos e experiências que estimulem todas as dimensões do desenvolvimento, não apenas a cognitiva. Muitas famílias focam-se em jogos de memória, letras e números, mas esquecem que o desenvolvimento sensorial e motor é a base para o desenvolvimento cognitivo e académico.

Quanto aos livros, é importante escolher livros que despertem a curiosidade, as emoções e a imaginação, adequadas à idade e ao nível de compreensão da criança. Livros com diferentes texturas, sons ou elementos interativos também têm um grande valor terapêutico, especialmente nas idades mais precoces.

 

Como é que a tecnologia e os recursos digitais podem ser aliados no desenvolvimento motor e cognitivo das crianças e evitar que sejam um problema?

Devem ser respeitadas as recomendações da Sociedade Portuguesa de Pediatria quanto ao tempo máximo de ecrã por faixa etária. Dentro desses limites, a tecnologia pode ser uma aliada, desde que utilizada de forma intencional e equilibrada.

Pode, por exemplo, ser usada para jogos educativos, atividades de movimento guiado, experiências de arte digital ou momentos de partilha em família, como ver um filme juntos ou criar um pequeno projeto interativo. O segredo está no equilíbrio: a tecnologia deve complementar, não substituir, as experiências reais e o brincar livre.

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Considerando a sua experiência, que conselho deixaria aos pais que sentem pequenas dificuldades nos filhos, mas não sabem se devem procurar ajuda terapêutica?

Os pais são quem melhor conhece a criança, e o seu instinto raramente falha. Costuma dizer-se que “quando há fumo, há fogo”. Por isso, se há dúvidas, é sempre recomendável procurar uma avaliação especializada.

Dessa avaliação resultará uma análise técnica e compreensiva das preocupações, podendo conduzir a uma intervenção terapêutica, à aplicação de estratégias práticas ou ao encaminhamento para avaliação feita por outros profissionais. O mais importante é não esperar que as dificuldades se agravem, a intervenção precoce faz toda a diferença.

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