
A progressiva digitalização do quotidiano da sociedade tem provocado uma inevitável reconfiguração das práticas jurídicas tradicionais. No domínio do Direito Imobiliário, a introdução de tecnologias como a blockchain, a inteligência artificial (IA) e as assinaturas digitais qualificadas têm aberto caminho para novos modelos contratuais, entre os quais se destacam os chamados Contratos Inteligentes (“smart contracts”), que prometem revolucionar a celebração e a execução de negócios jurídicos, nomeadamente no âmbito das transações imobiliárias.
Neste artigo preparado para o idealista/news, Inês Seiça Fernandes, Advogada Associada do Departamento de Direito Imobiliário, da André Miranda Associados, analisa as vantagens e os desafios jurídicos da adoção destes Contratos Inteligentes no ramo imobiliário, especialmente à luz da validade dos atos jurídicos praticados à distância com o apoio da IA e assinatura digital, da segurança contratual e da compatibilidade com os princípios e os formalismos próprios do ordenamento jurídico português.
O que são os Contratos Inteligentes?
Os Contratos Inteligentes são protocolos informáticos que executam automaticamente as disposições contratuais previamente definidas pelas partes, baseados em tecnologia blockchain. Isto é, operam com cláusulas programadas para serem automaticamente cumpridas quando determinadas condições são atendidas (por exemplo: se A ocorrer, então B executa-se). Diferentemente dos contratos tradicionais, que dependem de intervenção humana para a fiscalização e execução, os “smart contracts” reduzem (ou eliminam) essa necessidade.
Contudo, apesar da designação “inteligente”, estes contratos não possuem discernimento jurídico, sendo apenas linhas de código executáveis. A sua inteligência advém da automatização e da descentralização da sua execução.

Vantagens dos Contratos Inteligentes nas transações imobiliárias
Celeridade e redução de burocracia
Esta automatização característica irá permitir acelerar procedimentos, reduzir intermediários e minimizar erros operacionais. No ramo imobiliário, onde os trâmites costumam ser morosos e formalistas, a utilização de smart contracts pode representar mesmo um salto qualitativo em termos de eficiência.
Transparência e imutabilidade
A utilização de blockchain assegura a imutabilidade do registo das transações e a transparência entre as partes, o que pode contribuir para reduzir fraudes e aumentar a confiança nos negócios.
Compatibilidade com assinaturas digitais e atos à distância
Em Portugal, e indo ao encontro do previsto no Regulamento (UE) n.º 910/2014, a assinatura eletrónica qualificada é legalmente equiparada à assinatura manuscrita, desde que seja baseada num certificado digital qualificado.
Esta realidade demonstra que, em termos formais, o ordenamento jurídico português está cada vez mais preparado para a celebração de atos jurídicos digitais, inclusivamente no setor imobiliário.
Apoio da IA na produção e execução contratual
Efetivamente, a IA já tem vindo a ser utilizada para a elaboração automática de contratos, validação de documentos, e gestão de riscos contratuais, podendo atuar como auxiliar na revisão de cláusulas, deteção de incongruências e até gestão de prazos e obrigações.

Desafios jurídicos e limitações atuais
Formalismo e exigências legais específicas
A verdade é que apesar de todas estas inovações tecnológicas que temos vindo a presenciar, subsistem, ainda, algumas exigências formais legais específicas para a validade de certos atos jurídicos. Em matéria imobiliária, a transmissão de direitos reais exige, em regra, a celebração de uma Escritura Pública e subsequente registo na Conservatória do Registo Predial (cfr. artigo 875.º do Código Civil e artigo 2.º do Código do Registo Predial).
Assim, ainda que se admita a prática de Escrituras digitais, a integração total de Contratos Inteligentes com os sistemas notariais e conservatórios ainda não está plenamente operacional, o que limita, por agora, a sua eficácia na transmissão da propriedade.
Regidificação contratual e ausência de interpretação contextual
Um dos maiores desafios reside na incapacidade para interpretar nuances contratuais, como os princípios da boa-fé ou da equidade. O contrato programado irá executar-se tal como foi codificado, sem atender a mudanças de circunstâncias, erros materiais ou interpretações razoáveis que, no modelo tradicional, poderiam ser corrigidas ou moduladas.
Responsabilidade por falhas tecnológicas ou código defeituoso
Neste tema, podemos ainda colocar a seguinte questão de fundo: “quem é que irá responder, juridicamente, por uma execução automática indevida motivada por um erro no código do Contrato Inteligente? O programador, a plataforma tecnológica ou as partes?”. A verdade é que a resposta permanece juridicamente indefinida, exigindo um desenvolvimento doutrinário e legislativo mais claro sobre a responsabilidade civil em ambiente digital automatizado.
Capacidade técnica das partes e acesso ao direito
A sofisticação técnica dos Contratos Inteligentes pode dificultar a compreensão efetiva das cláusulas por parte dos contraentes, sobretudo quando não assistidos por assessoria jurídica. Tal realidade pode afetar os princípios da autonomia da vontade e da transparência contratual, especialmente em relações de consumo ou quando uma das partes se encontre em posição de menor literacia digital.

Perspetivas futuras
Portugal tem vindo a dar passos significativos na transição para o Direito Digital, como se comprova através do investimento nos serviços públicos eletrónicos, do reforço da justiça digital e da crescente aceitação legal de documentos e atos eletrónicos.
Contudo, para que os Contratos Inteligentes possam ser plenamente aplicáveis no domínio imobiliário, será necessário aprofundar a interoperabilidade entre os sistemas blockchain e os sistemas públicos (por exemplo: notariado, conservatórias), criar normas específicas que regulem a responsabilidade por execução automatizada, promover diretrizes éticas e jurídicas para o uso de IA no processo contratual e estimular a capacitação digital de juristas, notários, conservadores e cidadãos.
- Conclusão:
Os Contratos Inteligentes apresentam-se como um instrumento jurídico-tecnológico promissor, com potencial para transformar profundamente as transações imobiliárias em Portugal, tornando-as mais céleres, seguras e transparentes. E a infraestrutura legal necessária, nomeadamente no que respeita a assinaturas digitais e a atos à distância, já se encontra, em grande parte, disponível no ordenamento jurídico português.
Contudo, a sua adoção plena carece de ajustes normativos, desenvolvimento técnico-institucional e reflexão doutrinária mais aprofundada. A integração entre o Direito e a tecnologia deve ser feita com prudência, garantindo a salvaguarda dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico, a proteção das partes contratantes e a estabilidade do negócio jurídico.
A modernização não pode ser um fim em si mesma, mas um meio de reforçar a eficiência, a justiça e a confiança nas relações jurídicas, também, e sobretudo, no domínio imobiliário.
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