Da engenharia à arquitetura, passando pelo design e decoração de interiores. São apenas algumas das áreas que, no mundo pós-pandemia, se veem obrigadas a repensar os espaços, mas sobretudo a relação das pessoas com eles. As casas, as ruas e as cidades vivem-se de outra maneira, abrindo caminho à reflexão, mas também à criatividade. “Será que não deveríamos abrir as nossas marquises? Será que as ruas estão bem dimensionadas? Será este o fim dos centros comerciais? E como poderemos coabitar no futuro em grandes cidades?”. As dúvidas em forma de desafio são lançadas por Gabriella Gama, sócia-fundadora do Apparatus Architects, um gabinete de arquitetura português recentemente galardoado nos Prémios Architizer A+Awards 2020, em entrevista ao idealista/news.
Em tempos de incerteza e de revolução global, aquele que é o maior e mais internacional programa de prémios do setor que homenageia a melhor arquitetura, espaços e produtos de todo o mundo – os Prémios Architizer A+Awards, que vão já na sua 8ª edição – decidiu que o tema deste ano deveria focar-se no “Futuro da Arquitetura”, dando destaque a projetos que estão a transformar a sociedade e o ambiente para as gerações futuras. E o ADN português não só marcou presença neste concurso, como também “arrecadou” um prémio.
O estúdio em causa, fundado pelos arquitetos Filipe Lourenço e Gabriella Gama, em 2016, arrecadou um troféu na categoria "Architecture + Ceilings". E foi a reabilitação do seu próprio escritório, localizado no histórico Palácio Cruz Alagoa, no bairro do Príncipe Real, em Lisboa, que lhes valeu o prémio. Os arquitetos explicaram ao idealista/news o processo de criação deste projeto, refletindo simultaneamente sobre os efeitos da pandemia no mundo da arquitetura e de que forma este novo contexto está a impactar a atividade.
Para Gabriella Gama este tem sido, sobretudo, “um tempo de muita reflexão e introspeção”, num momento em que é cada vez mais importante questionar o futuro do espaço público, o seu uso e ocupações.
Em que ano fundaram o vosso atelier? Como é composta a vossa equipa?
Fundamos o nosso estúdio em outubro de 2016. Temos uma equipa pluridisciplinar fundada por dois arquitetos, Filipe Lourenço e Gabriella Gama, com duas novas recentes associadas, Inês Braz e Bárbara Romero. Além disso, contamos também na nossa estrutura fixa com uma designer gráfica, outros arquitetos e estagiários.
A que tipo de projetos se dedicam? Mais nacionais ou internacionais?
O escritório desenvolve trabalhos com escalas e tipologias distintas, cujo principal interesse foca-se na arquitetura, reabilitação e design urbano. Com fluência em vários idiomas, o atelier oferece um leque de serviços integrados de todas as fases de arquitetura e construção, desde o desenho conceptual do projeto, licenciamento das obras, até à supervisão técnica em obra.
Atuamos tanto no mercado nacional como internacional, e hoje possuímos um portfólio de projetos realizados em Portugal, França e no Brasil. E isso também é um reflexo da configuração multicultural da nossa equipa.
A obra vencedora do Architizer A+Awards foi o teto construído no vosso escritório de arquitetura em Lisboa, situado num palácio histórico no Príncipe Real. Podem contar um pouco sobre a história deste local? Que palácio era este? E o que distingue este projeto de outros?
Sim, o projeto é situado no Palácio Cruz Alagoa que pertenceu ao José Francisco da Cruz Alagoa, datado de 1757. Desde então o Palácio já sofreu inúmeras modificações e subdivisões primeiramente em dois edifícios, e em seguida em divisões de propriedades horizontais. Estas modificações levaram o Palácio a sofrer algumas atualizações de infraestruturas e reforços estruturais em meados dos anos 2000.
Como surgiu a ideia de desenhar um teto assim?
No primeiro contacto com o espaço, sentiu-se falta das texturas e da riqueza do próprio edifício. O espaço tinha um teto muito baixo, abaixo da altura das janelas, reduzindo bastante a incidência de luz natural. Sentimos que algo estava errado de imediato com o teto. Tínhamos de despir o espaço e deixá-lo cru.
Estas abóbadas eram a nossa resposta e era a história que queríamos revelar
Debaixo do teto descobriram-se vigas originais juntamente com vigas de aço de uma obra mais recente, onde era possível ler a história do lugar. Enquanto explorávamos referências e arquétipos existentes no palácio, intrigaram-nos os tetos abobadados em tijolo encontrados nas traseiras, num antigo corredor que ligava o pátio até aos antigos estábulos. Estas abóbadas eram a nossa resposta e era a história que queríamos revelar.
Concorreram com obras de diversas parte do mundo. Qual a sensação e importância de receber um prémio como este? Já receberam outros galardões?
É um sentimento de profunda satisfação e alegria ver o reconhecimento do nosso trabalho. Principalmente quando o mundo à nossa volta passa por um momento extremamente difícil e instável, onde questionamos a nossa forma de viver por completo, a nossa forma de nos relacionar uns com os outros. Ficámos muito felizes por ver o nosso trabalho ser selecionado pelo júri e surpreendidos quando recebemos a notícia que tínhamos ganho pela escolha do público, mais ainda por se tratar do nosso espaço de trabalho e criação.
Antes do Architizer nãonos havíamos candidatado a nenhum prémio, foi a primeira vez.
A pandemia é uma oportunidade ou uma ameaça na área da arquitetura? Porquê?
Não conseguimos ver a pandemia nem como uma ameaça nem como uma oportunidade no que diz respeito à nossa profissão. Acreditamos que fomos afetados no âmbito do contacto humano da prática profissional, que habitualmente era bastante presente e neste sentido tivemos que nos reinventar.
Toda e qualquer pessoa que foi obrigada a ficar confinada durante a quarentena passou a ser mais consciente do seu espaço e da importância e qualidade do mesmo
Já por outro lado, se podemos considerar como oportunidade, seria mais no sentido de haver uma profunda e inevitável reflexão sobre o habitar, onde toda e qualquer pessoa que foi obrigada a ficar confinada durante a quarentena passou a ser mais consciente do seu espaço e da importância e qualidade do mesmo. E acho que isso irá afetar positivamente a nossa profissão no futuro. Além das relações da sociedade com a própria cidade, onde questionamos até o futuro do espaço público, o seu uso e ocupações.
Como está o atual contexto a impactar a vossa atividade?
Sentimos um impacto importante na nossa profissão no que diz respeito à novas logísticas, práticas e hábitos quanto a assistências técnicas em obra, contactos com técnicos, fornecedores e clientes. Em contrapartida, achamos que o confronto desta pandemia trouxe uma consciencialização generalizada do ser humano e do seu espaço, a sua cidade e o espaço público. Será que não deveríamos abrir as nossas marquises? Será que as ruas estão bem dimensionadas? Será que isto será o fim dos centros comerciais? E como poderemos coabitar no futuro em grandes cidades? Tem sido um tempo de muita reflexão e introspecção. Nós projetamos para as pessoas e finalmente achamos que conseguimos ter um debate democrático sobre o espaço.
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