Ana Aragão, a arquiteta desenhadora que dá vida ao imaginário urbano através do papel em entrevista ao idealista/news.
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Ilustrações de Ana Aragão
Ana Aragão, a arquiteta desenhadora Foto: Cláudia Rocha

A arte é, cientificamente comprovado, um meio de evasão. Uma porta aberta a outros mundos, lugares, espaços e tempos. Através da arte podemos afastar-nos do stress e dos problemas quotidianos. Do duro que a vida se pode ter tornado nos últimos tempos marcados, primeiro, pela pandemia e, mais recentemente, pela guerra na Ucrânia. E, nas palavras de Ana Aragão, “criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação.” Recentemente, a artista criou um desenho de Kiev para apoiar os refugiados

Ana Aragão acredita que os espaços habitados com a imaginação podem ser tão poderosos como os que habitamos no corpo. Agrada-lhe “inventar cenários que não podem acontecer”, até porque a “vida é unicursal, a imaginação multicursal”. Desenhadora? Arquiteta? Ilustradora? Em entrevista ao idealista/news, a artista descreve-se como uma desenhora que vem da arquitetura, a sua base de formação. Mas não precisa de desenhar para depois construir. O desenho é o fim em si mesmo e sente-se bem no mundo bidimensional, até porque a “criação contraria a vida, que já é real o suficiente”.

A artista portuense explora a temática dos imaginários urbanos e da arquitetura em papel. Os seus desenhos meticulosos a caneta, que começaram com rabiscos, parecem ter vida própria. Invocam memórias, narrativas, paisagens híbridas e labirínticas, quase mapas impossíveis. Não quer transmitir “nada” com as suas construções gráficas, que apelida carinhosamente de “anagrafias”. Agrada-lhe a ideia que cada pessoa veja e sinta o que quiser, ou que até nem sinta ou nem olhe. “Agrada-me que o puzzle se faça na cabeça do observador e não nos seus olhos”. E acrescenta: “Projetamo-nos naquilo que vemos e podemos chegar a sentir uma identificação profunda com uma obra de arte”.

Procura inspiração nas palavras e na literatura, uma “excelente motivação” para os desenhos. Conta que sempre que tem um projeto novo, abre livros. Gosta também particularmente de cidades, “de deambular de modo aleatório pelas ruas”. “Essas experiências, mesmo que indiretas, acabam por ser vertidas para as minhas construções gráficas”, explica Ana Aragão. Há desenhos que demoram apenas dias ou semanas, e outros que demoram meio ano a produzir. No atelier, no centro do Porto, chega a passar seis horas no chão sem se levantar, e por isso o esforço físico pode também ser bastante exigente.

Os desenhos parecem desafiar a gravidade, numa espécie de puzzle, com várias peças empilhadas. Simboliza um pouco do que somos: “somos coleções de coisas, de tralhas, de memórias, de traumas, de símbolos. Somos seres que se constroem por adição, acumulação, a nossa natureza não é minimalista”, salienta.

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Ilustração de Kiev para ajudar a Ucrânia Foto: Cláudia Rocha, byclaudiarocha.com

Nas últimas semanas, Ana Aragão criou um desenho para ajudar a Ucrânia. Trata-se de uma ilustração de Kiev, onde se destaca a Catedral de Santa Sofia, com a qual pretende angariar verbas para apoiar as vítimas da guerra. As cópias assinadas, numeradas, e acabadas à mão, estão disponíveis para venda através do P55.ART, que se associou a esta iniciativa - 100% do valor reverte para instituições de apoio aos refugiados.

"O início deste conflito brutal e injustificável apanhou muitas pessoas desprevenidas e deixou-me particularmente perturbada. As imagens e apelos diretos que nos chegam todos os dias fizeram-me sentir muito impotente e interessou-me pesquisar um pouco mais sobre a Ucrânia", confessa. 

Dois ícones arquitetónicos de Kiev chamaram a sua atenção: a 'Comfort Town', dos Archimatika, "um antigo complexo industrial transformado num bairro colorido, com um ar lúdico, princípios de vizinhança e de vivência interessantes, bem como preocupações sustentáveis", e também a a Catedral de Santa Sofia de Kyiv, "com uma longíssima história, também de resistência a momentos em que esteve em risco de desaparecer". "Foi o primeiro monumento ucraniano a entrar para o Património Mundial da UNESCO, o que quer dizer que é de todos nós, da Humanidade", acrescenta. 

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Foto: Cláudia Rocha, byclaudiarocha.com

"Unir estas duas construções numa só, que se ergue colorida no meio de um fundo monocromático, criou uma imagem positiva, porventura de uma utopia. A representação pode ainda, felizmente, contrariar a realidade. Os habitantes da capital acreditam, segundo li, que o país resistirá enquanto este monumento também resistir", explica Ana Aragão, cujo trabalho também pode ser acompanhado na sua página de instagram, que soma perto de 19 mil seguidores.

"Espero que este projeto artístico possa efetivamente ajudar quem precisa de ajuda. Que todos os que fogem possam encontrar uma nova 'comfort town'”, diz a artista. 

“Not a real architect, nor purely an illustrator. Somewhere between.” Quem é a Ana Aragão?

Sou uma arquiteta de papel, uma desenhadora. Formei-me em arquitetura, mas percebi que não precisava de concretizar os meus projetos materialmente. Depois de alguns desvios, encontrei os meus desenhos, aqueles que caracterizam de algum modo o meu universo, que tem sempre âncora na cidade e na arquitetura, nos modos de viver os espaços humanos. Comecei uma tese que tratava as ideias de representação do urbano e seus imaginários. Nunca a tendo concluído, a minha investigação gráfica dá prolongamento a essas questões que se prendem com a arquitetura, mas também com o universo da imaginação e da impossibilidade.  

Sou uma arquiteta de papel, uma desenhadora. Formei-me em arquitetura, mas percebi que não precisava de concretizar os meus projetos materialmente. Depois de alguns desvios, encontrei os meus desenhos, aqueles que caracterizam de algum modo o meu universo

Podemos dizer que é uma arquiteta desenhadora? De que forma é que a arquitetura está presente nos seus desenhos? E o urbanismo?

Sim, sou uma desenhadora que vem da arquitetura. A arquitetura é a chave para ver a minha obra, embora me agrade que não exista apenas uma leitura das obras. Há sempre uma certa ironia à arquitetura modular, porventura estéril e feita exclusivamente para o sentido da visão. Tal como Juhani Pallasmaa, acredito que a arquitetura é mais rica e estimulante quando convoca o sentido háptico e tátil e, tal como este pensador, acredito que os espaços habitados com a imaginação podem ser tão poderosos como os que habitamos com o corpo.

Em relação à cidade, agrada-me pensar como recordamos uma cidade e como nos orientamos nela, e por isso o meu grande interesse por mapas mentais. A memória, como ensina António Damásio, vai sendo alterada à medida que a ela recorremos e muitos dos meus desenhos falam dessas distorções mentais e inacessíveis operadas pela perceção. Interessa-me a cidade também como conjunto de símbolos e referências, mas também a cidade genérica, a megalópole, a cidade anónima.  

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Créditos: Ana Aragão

Numa entrevista recente, disse sentir-se bem no “mundo bidimensional”. Porquê?

Não gosto de obra. Não gosto de uma das partes fundamentais da profissão do arquiteto. Não preciso de ver as minhas “construções” no mundo, acho sinceramente que o mundo não precisa delas. O mundo bidimensional é o mundo da representação, é um lugar que não existe, uma utopia. O desenho não condiciona a vida das pessoas, no limite um desenho pode rasgar-se, queimar-se. Agrada-me essa fragilidade do meu trabalho, ou, para usar um título belíssimo de Werner Herzog, a minha “conquista do inútil”. Para citar uma banda que gosto muito, os The National, crio “fake empires”, geralmente meios obsoletos e enigmáticos. É nesses reinos invisíveis que me interessa viver. A criação contraria a vida, que já é real o suficiente. Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação.  

Não gosto de obra. Não gosto de uma das partes fundamentais da profissão do arquiteto. Não preciso de ver as minhas “construções” no mundo

Atualmente, dedica-se exclusivamente ao desenho, explorando a temática dos imaginários urbanos e da arquitetura em papel. Quando é que percebeu que este era o “caminho”?

Nas aulas de doutoramento comecei a rabiscar os cadernos. Os meus colegas começaram a perguntar-me por eles, se eu expunha; enfim, repararam neles. Isso fez que os olhasse também e neles reparasse. A partir daí desenhar tornou-se diário e comecei a desenhar em paralelo ao doutoramento que ia fazendo. Num almoço com um amigo, tive uma epifania. Dizia-lhe convictamente que tinha que acabar o doutoramento para depois me dedicar em exclusivo ao desenho. E ele perguntou-me “porquê?”. Apercebi-me que não tinha resposta. Tinha encontrado a minha vocação e decidi começar a tentar viver dos desenhos. Foi a melhor decisão que tomei na vida. 

Lembra-se dos seus primeiros desenhos? Quando é que descobriu esta paixão?

Os meus primeiros desenhos foram motivados pela minha querida avó Lélé. Ela motivava-me a fazer “desenhos estrambólicos”, que constituam numa linha única e curva que se sobrepunha. Eu tinha que preencher os espaços criados por essa linha, com cores. Tenho muitas saudades desses desenhos. Na escola, tive um excelente desenhador como professor, Manfred Reiter. Foi ele que me ensinou a fazer tramas e usar caneta fina. Tenho a certeza que a sua linguagem me influenciou muito, bem como um livro do Escher que me ofereceu. Lembram-me amigas que quando cheguei ao 12º ano, disse que queria desenhar e escrever. 

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Créditos: Ana Aragão

Os seus desenhos parecem ter vida própria, (também) pelo grande nível de detalhe. Onde procura inspiração?

Julgo que as palavras/a literatura são uma excelente motivação para os desenhos, mais do que outras imagens. Sempre que tenho um projeto novo, abro livros. Gosto também particularmente de cidades, de deambular de modo aleatório pelas ruas. Essas experiências, mesmo que indiretas, acabam por ser vertidas para as minhas construções gráficas, que de facto têm muito detalhe e demoram muito tempo a fazer. Devo ter alguma espécie de horror ao vazio ou miopia mental, porque tento levar sempre o desenho ao limite. Agrada-me que os desenhos tenham uma leitura ao longe e muitas ao perto, ou seja, tento dificultar ao máximo a possibilidade de ficarmos com uma imagem geral e completa do desenho. Agrada-me que o puzzle se faça na cabeça do observador e não nos seus olhos.  

Julgo que as palavras/a literatura são uma excelente motivação para os desenhos, mais do que outras imagens.

Quanto tempo pode demorar a produzir um desenho? Como funciona o processo de criação? Ouve música? Prefere o silêncio? E onde trabalha?

Tenho desenhos que demoram meio ano a produzir, em termos efetivos de trabalho. Ou seja, contando que trabalho o dia todo, disciplinadamente, sobre a mesma folha de papel. Há desenhos que levam apenas semanas, outros, dias. Depende da intenção, do contexto. Não estou a contar com o tempo que demoro a chegar a uma ideia. Esse tempo podem ser anos. Esse tempo impossível de contabilizar é tão ou mais importante do que o tempo de execução. Trabalho no meu atelier, no centro do Porto. É o meu refúgio. Gosto muito de ouvir música enquanto desenho, ajuda-me a sair deste mundo e entrar noutro. 

Com o que é que desenha? Lápis e caneta BIC?

Desenho com caneta de tinta preta, geralmente. De bico fino. Pilot, Micron, entre muitas outras. Nos últimos anos tenho desenhado muito com BIC preta. Não excluo nenhum material, embora estes sejam os meus preferidos. Uso pouco lápis, e quando utilizo, é apenas como guias que geralmente apago. Também desenho com pincel e tinta da china, por vezes. Tenho testado lápis de cor para colorir e as aguarelas são convocadas ao estirador pontualmente. 

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Créditos: Ana Aragão

Além de mental, exigirá também um grande esforço físico. Quanto tempo pode demorar a produzir um desenho?

Sim, o esforço físico pode ser bastante exigente, já que trabalho muito no chão. Chego a passar seis horas no chão sem me levantar. 

“Mas eu gosto mesmo mesmo é de imaginar o não pode acontecer. Imaginamos porque precisamos. Imaginamos o que queremos e muitas vezes o que não queremos. Mas imaginamos sobretudo o que não podemos”, uma frase sua. O que é que isto quer dizer na prática?

Imaginar o que pode acontecer é quase planear. Agrada-me inventar cenários que não podem acontecer. Acredito na bifurcação temporal proposta por Jorge Luís Borges em “O Jardim dos caminhos que se bifurcam”. Acho belíssima a ideia que vários desfechos simultâneos podem acontecer, no plano inteletual e sentimental. A vida é unicursal, a imaginação multicursal. Desses dois tipos podem ser os labirintos. Gosto mais dos multicursais, permitem que nos percamos mais. Como dizia Nietzsche, resta-nos a arte para não morrermos de verdade. Podemos dizer o mesmo da imaginação. 

A vida é unicursal, a imaginação multicursal. Desses dois tipos podem ser os labirintos. Gosto mais dos multicursais, permitem que nos percamos mais.

O que é que gosta mesmo de desenhar e o que pretende transmitir?

Não quero transmitir nada. Com as palavras que vão acompanhando os textos, já é diferente. Em relação às obras, agrada-me que cada pessoa veja e sinta o que quiser. Ou que não sinta nem olhe. Sir Peter Cook distingue entre dois tipos de pessoas, as que olham efetivamente para os desenhos e as que assumem que eles estão lá. Não vejo problema quanto a isso. 

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Créditos: Ana Aragão

Apelida as suas obras de “anagrafias”. Porquê?

A primeira exposição individual que fiz, em Viana, chamava-se precisamente “anagrafias urbanas”. O prefixo grego "ana" quer dizer “para cima, para trás, de novo”. Acho bonita essa relação entre o meu nome e a ideia de repetição, inversão. Olhar as coisas  habituais com olhos novos. 

Alguns desenhos parecem desafiar a gravidade, numa espécie de puzzle, com várias peças empilhadas. O que é que simbolizam?

Somos coleções de coisas, de tralhas, de memórias, de traumas, de símbolos. Somos seres que se constroem por adição, acumulação, a nossa natureza não é minimalista. 

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Créditos: Ana Aragão

‘No Plan for Japan’, no Museu do Oriente, é o seu mais recente trabalho. Que exposição é esta?  

É um projeto desenvolvido durante os dois anos de confinamento/pandemia. O resultado, curiosamente, é o projeto mais leve e colorido que já fiz. Tem a ver com o imaginário maravilhoso do Japão, com a sua natureza gráfica, com a animação japonesa, as estampas, a arquitetura metabólica, as cidades de Tóquio e Quioto. É muito difícil resumir esta exposição  porque toca em muitas coisas que me tocaram na experiência do Japão. A exposição 'No Plan for Japan' é composta por 6 coleções intituladas “Blind Dates”, “The Metabolic Ones”, “Forever Lost”, “Fictions”, “Obi”, “Kanji” e obras soltas, perfazendo o total de 48 desenhos. Foi uma exposição muito feliz, que contou com a colaboração da Universidade Lusófona do Porto, que animou os desenhos através de realidade aumentada. Expor no Museu do Oriente, em Lisboa, foi francamente uma honra. 

Já há mais projetos pensados para este ano?

Tenho mais projetos para este ano do que aqueles que consigo realizar. Terei a breve trecho obras na exposição do MAAT “Interferências”. Tenho projetos para clientes privados, empresas e causas que me interessam, tenho parcerias com escritores e autores que estão também para acontecer. A minha gaveta não tem fundo, a minha cabeça também não. 

“Criar (mundos) imaginários é uma forma de salvação”
Créditos: Ana Aragão

Se alguém quiser ter um dos seus desenhos na parede de casa o que é que tem de fazer? Que tipo de clientes tem?

Pode contactar-me pelas redes sociais ou email. Eu e a minha mini equipa fazemos o melhor por responder com brevidade.  

Que papel pode ocupar uma obra de arte numa casa e na identidade de um espaço?

António Damásio dizia numa entrevista recente que as casas servem para ter secretárias, livros nas estantes e quadros nas paredes (estou a citar de cor). Projetamo-nos naquilo que vemos e podemos chegar a sentir uma identificação profunda com uma obra de arte, como me acontece por exemplo com Rothko. Os "quadros nas paredes” podem ser janelas para outros interiores, talvez o nosso. 

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