O planeta Terra bateu o recorde do dia mais quente alguma vez registado dia 22 de julho de 2024, de acordo com dados preliminares do Copérnico, programa de monitorização do clima da União Europeia (UE). E apesar das ondas de calor sempre terem existido, estão a tornar-se cada vez mais frequentes e intensas. No futuro, se nada for feito, as cidades poderão atingir condições térmicas que vão afetar a utilização dos espaços públicos e a saúde humana. E é por isso que pensar a morfologia do tecido urbano e construção sustentável é mais importante que nunca. Mas planear e desenhar as cidades, assim como as casas, tendo em conta os desafios climáticos, exige uma “abordagem interdisciplinar”, tal como explica André Nouri, investigador e arquiteto urbanista, em entrevista ao idealista/news.
Em vários estudos de caso, de que são exemplo Lisboa ou Ancara (Turquia), o especialista analisou como é que o desenho público pode alterar a questão do stress térmico, concluindo que muitas cidades continuam a apresentar uma falta significativa de informações meteorológicas e climatológicas que poderiam ajudar à tomada de decisões no âmbito do planeamento urbano. Além disso, muitas "construções não estão aptas para lidar com o calor", alerta.
Para o professor da NOVA FCT, a cooperação entre o urbanismo e a ciência devia ser uma prioridade. Defende uma maior ligação entre os municípios e profissionais como arquitetos, paisagistas e cientistas, de forma a serem sustentadas “as melhores ideias para adaptar e aumentar a resiliência dentro do tecido urbano”.
“Se hoje entrarmos em ação, mesmo assim, no final do século, vamos ter desconforto térmico de níveis altíssimos. Se não fizermos nada, podemos ter condições térmicas absolutamente horrorosas que vão afetar a utilização da cidade e outras coisas importantíssimos que é a saúde humana”, salienta.
Para André Nouri, seria importante comunicar e explicar à população em geral a questão dos índices térmicos, isto é, os fatores do clima urbano – que não dizem respeito apenas à temperatura, mas que englobam também a radiação ou o vento – e de que forma podem impactar os espaços e a forma como vivem.
É imperativo pensar o planeamento das cidades do ponto de vista dos desafios climáticos. Quais deveriam ser as prioridades desde já?
Tem de haver uma abordagem interdisciplinar, ou seja, em que se consegue reunir entidades diferentes que vão mexer no tecido urbano. Profissionais como arquitetos, urbanistas, paisagistas têm de trabalhar também com os municípios e cientistas, sempre focado para aquilo que é verdadeiramente importante, que é o ser humano. E é preciso sempre salientar a importância dessa comunicação, que seja sempre interdisciplinar.
"Profissionais como arquitetos, urbanistas e paisagistas têm de trabalhar também com os municípios e cientistas"
Sente que isso já está a acontecer ou acontece de alguma forma, ou ainda estamos muito longe de haver essa interdisciplinaridade?
De alguma maneira, estamos já a avançar. Mas existem fatores que precisam de ser muito desenvolvidos, porque existe ainda uma grande divisão entre a prática em si do urbanismo e a integração da ciência, que pode sustentar as melhores ideias para adaptar e aumentar a resiliência dentro do tecido urbano.
O André estudou cidades como Lisboa e Ancara, que estão sujeitas a um elevado stress térmico. Quais é que são as consequências futuras se nada for feito a respeito deste tema?
No estudo de caso de Lisboa, por exemplo, e nos meus estudos no Rossio e na Baixa Chiado, por exemplo, foi muito interessante perceber que mesmo se já conseguirmos fazer intervenções dentro do espaço público, ou seja, através de intervenções diferentes, seja de considerar os materiais de superfície, as árvores, considerar morfologia urbana... Se hoje entrarmos em ação, mesmo assim, no final do século, vamos ter desconforto térmico de níveis altíssimos. Portanto, vai haver muito desconforto e isso vai influenciar a utilização do espaço público. Se não fizermos nada, podemos ter condições térmicas absolutamente horrorosas que vão afetar a utilização da cidade e outras coisas importantíssimas que é a saúde humana, ou como vamos comunicar e utilizar os espaços. Tudo isso vai ser fundamentalmente alterado se não fizermos nada.
"Se hoje entrarmos em ação, mesmo assim, no final do século, vamos ter desconforto térmico de níveis altíssimos"
Utilizou o caso do Rossio para analisar como é que o desenho público pode alterar esta questão do stress térmico. Em que é que consistiu esse trabalho de análise?
Foram várias etapas de trabalho num projeto que era identificar os locais de risco, a pensar na temperatura, na radiação, o vento e a humidade dentro do espaço público e depois ver quais são os locais que precisavam de ser melhorados. E isto tanto em termos de fisiologia como de psicologia do espaço. E depois, ao identificar as zonas ou as áreas dentro do espaço público de risco, era pôr as medidas e, através disso, usar programas ou modelos biometeorológicos para entender como é que, por exemplo, uma árvore, um tecido de nylon ou a utilização daqueles jatos de água por cima dos cafés, podiam melhorar ou reduzir a quantidade de stress térmico nos diferentes locais do Rossio.
Que medidas é que podem ser realmente implementadas para incentivar o urbanismo sustentável? Qual seria o papel da arquitetura neste âmbito?
O papel da arquitetura, tanto em termos de arquitetura, tanto em termos de urbanismo, ou seja, qualquer profissão que tenha em foco alterar a constituição do espaço físico, tem de entender melhor o que nós chamamos ‘bottom up’. Por exemplo, quando ouvimos do IPCC (The Intergovernmental Panel on Climate Change) e de entidades internacionais a falar de alterações climáticas, normalmente ouvimos modificações de, por exemplo, dois graus de temperatura até ao final do século. Mas em termos de ‘bottom up’, relativamente aos agravamentos derivados de alterações climáticas, podemos ter variações não de dois graus, mas, por exemplo, de dez, 12 ou de 15 graus, porque estamos a ter em conta a radiação. Portanto, como arquitetos e não só, temos sempre de focar também nas características do local e considerar dois fatores importantes que normalmente não se considera, que é a radiação e o vento.
"(...) Como arquitetos e não só, temos sempre de focar também nas características do local e considerar dois fatores importantes que normalmente não se considera, que é a radiação e o vento"
Ao nível da construção, os edifícios estão, cada vez mais, a ser pensados ponto de vista da sustentabilidade e da eficiência energética. Estamos a assistir, verdadeiramente, a uma mudança no setor? O paradigma está a mudar?
O fator de energia é muito importante, mas temos sempre de pensar que o balanço energético também temos dentro de nós, como ser humano e como a cidade em si. Portanto, como é que nós, como ser humanos, desenvolvemos uma certa energia e como é que a cidade tem um balanço energético. Uma coisa muito interessante, por exemplo, no caso de Ancara, é que tem problemas no sentido de que há muita construção que não adotou regras da União Europeia, depois de 2008. Então, o que é que acontece? As construções não estão aptas para lidar com o calor. A consequência disso é que quando passamos por um evento extremo de calor, seja por causa das ilhas de calor urbanas, seja por causa de dias muito quentes de verão ou mesmo ondas de calor, o que acontece, lá está, é o balanço energético. As casas aquecem muito e não conseguem dissipar a energia capturada, mesmo durante a noite, porque o tecido urbano está tão quente, tão quente, que a energia não consegue ser libertada.
E mesmo no caso de Lisboa, também isso é muito importante e acho que a intervenção tem de ser feita através de um sistema em que não podemos só questionar só uma casa ou um prédio.
Nós temos uma coisa que são os ‘Heat Action plans’, em que nós identificamos áreas de risco não só por causa da construção, mas também por causa da audiência, isto é, os grupos que são mais vulneráveis, ou seja, os idosos, as pessoas com doenças oncológicas e outras doenças muito graves que estão mais suscetíveis. Portanto, tem de se identificar, mapear não só as áreas de construção vulneráveis, mas também os membros do público mais vulneráveis.
No seu estudo, Lisboa foi um exemplo. Quais são os principais desafios da cidade? O que é que teria de ser feito já para começar a atenuar o stress térmico que está a aumentar?
Essa pergunta pode ser respondida de duas maneiras e engloba duas perspetivas, ou seja, uma perspetiva mais ‘short term’ e outra mais ‘long term’. Qualquer intervenção no espaço público ou na cidade demora tempo, é preciso dinheiro e envolve muitas políticas. As coisas não podem acontecer imediatamente, mas a longo prazo. E, por exemplo, temos o caso da Baixa, que tem muitos problemas por causa das ilhas de calor urbanas e por causa também da morfologia do tecido. As brisas, por exemplo, as nortadas que vêm do Tejo, não conseguem penetrar e arrefecer o tecido urbano. Mas qualquer coisa que seja feito em termos de medidas demora tempo. Isso é mais a longo prazo, que com certeza tem de ser feito, mas a curto prazo tem de haver uma melhor intervenção de alerta e comunicação com as pessoas.
"(...) A curto prazo tem de haver uma melhor intervenção de alerta e comunicação com as pessoas"
Fala em alertar as pessoas. O que é que o cidadão comum pode fazer para enfrentar estas questões? Em Portugal, as casas são muito quentes no verão e frias no inverno...
O tempo, o clima, é uma coisa que as pessoas falam muito. E faz parte da nossa conversa diária uns com os outros, se está muito calor ou está muito frio. "Vou para este sítio que deve estar mais calor, menos calor. Na semana passada passei tão mal no fim de semana ou não fui para este sítio porque estava muito calor". É uma coisa que se fala muito. Não sei se é tanto em termos do que é que as pessoas podem fazer, mas sim, lá está, o que é que as entidades podem comunicar com essas pessoas.
Por exemplo, olhamos para o telefone e vimos o tempo. Mas isso é só uma parte da história. Porque esses índices nem sempre são os mais adequados. Imaginemos que na terça-feira vão estar 32 graus. Mas isso poderá não ser bem assim...Tem de se ter em conta fatores como a radiação, vento, e isto são coisas que são específicas do lugar. Os municípios, os profissionais que estão responsáveis por afetar o tecido urbano, devem sim comunicar com as pessoas.
Concorda que deveriam existir políticas públicas ou de maior consciencialização para o tema do clima e das alterações climáticas? O que está a falhar na comunicação?
Uma coisa muito importante é a comunicação dos índices térmicos, ou seja, explicar os fatores do clima urbano. Nós, como ser humanos, não conseguimos identificar, por exemplo, só o vento, só humidade, só a temperatura... É uma combinação de sensações que nos fazem pensar: "Estou com frio? Estou bem, ou estou com calor?". Fatores de índices térmicos têm de ser muito mais explicados e comunicados, porque como em todas as áreas, especialmente os cientistas, têm muito foco em, por exemplo, trabalhar modelos que vão analisar a radiação de várias maneiras. Mas temos de ultrapassar o focar em melhorar a programação...
"As pessoas estão muito mal-informadas sobre o risco atual e ainda mais o risco futuro"
Recentemente, houve uma conversa sobre a calculação do índice térmico, que deve ter em conta como é que a pessoa está exposta ao sol, se está de costas, se está de frente... Isto é importante em termos de desenvolvimento de modelos, mas na realidade já sabemos o suficiente para comunicar esses modelos com o público em geral. Temos de perder aquele medo de “temos de continuar a desenvolver estes modelos” e “não podemos já divulgar e utilizar para comunicar o risco”. Tal como disse, as pessoas estão muito mal-informadas sobre o risco atual e ainda mais o risco futuro.
Sobre os riscos reais e futuros... Quais são?
Na perspetiva do ‘top down’, ou seja, quando olhamos para entidades internacionais, como mencionei, do IPCC que fala do aumento de dois graus de temperatura, por exemplo... Isto é extremamente fundamental para a análise do clima, sem dúvida. Mas em termos de ‘bottom up’ é importante entender a escala local.
Imaginemos uma rua. Essa rua vai ter exposições diferentes de radiação. Ou seja, como é que o sol bate na rua é completamente diferente assim que o dia vai passando e, portanto, o ângulo do sol onde bate vai variando, e isso traz implicações na utilização do espaço. E para nós podermos explicar às pessoas essa questão do risco, temos de focar outra vez, como disse, na comunicação interdisciplinar e fazer com que as pessoas entendam que os locais onde fazem o dia a dia estão em risco e porquê. Tudo isso sempre baseado nos fatores de risco, ou seja, não só a temperatura, mas sim outras variáveis. E são essas questões que têm de ser melhor comunicadas para as pessoas.
Já existem exemplos de cidades que estejam a trabalhar ativamente em modelos de design urbano?
Cada cidade é um caso de estudo. Claro que, em relação ao clima e às alterações climáticas, outro fator também são as cheias. Isso é muito desenvolvido, por exemplo, na Holanda. Relativamente ao stress térmico, o caso de Lisboa - também incentivado pela professora Maria João Alcoforado, que é uma referência internacional que começou muito dos estudos do clima urbano em Lisboa, que passaram a ser exemplos para outros países e que depois outras pessoas pegaram nesse trabalho - é um bom exemplo em termos de como é que podemos identificar o risco, mas, como na maior parte dos casos, não existe o suficiente para [saber] como é que nós podemos não só mitigar, mas adaptar aos problemas locais.
Isto foi um assunto falado no Programa Doutoral de Ambiente e de Sustentabilidade, que é coordenado pelo Professor Tomás Ramos na NOVA FCT. Estamos sempre a pensar também como é que podemos identificar esses riscos e depois também responder no local. Temos um termo que usamos que é o ‘in situ’. Ou seja, não só no local, mas mesmo no lugar onde conseguimos compreender as suas características e o impacto dos fatores microclimáticos na pessoa.
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