O idealista/news foi visitar a Rua das Flores, no Porto, onde a cultura portuguesa é elevada em três edifícios. Descobre como.
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Gonçalo Lopes
Gonçalo Lopes

Um ambiente dourado ilumina a movimentada Rua das Flores, no Porto. Será uma loja, um museu ou um atelier? Ao entrarmos apenas temos a certeza de que tudo respira história e filigrana. Veem-se artesãos, uma escada dourada em caracol e ao fundo várias tendas que nos fazem lembrar a Alice no País das Maravilhas. É todo um mundo mágico pensado para gerar curiosidade a quem passa. “Há toda uma fantasia que colocamos nas lojas, mas por detrás dessa fantasia há algo muito sério, que é contar a história destes artesãos (…) dar-lhes um palco para brilhar”, revela em entrevista ao idealista/news Sónia Santiago, diretora de Marketing e Comunicação Cultural no grupo O Valor do Tempo.

Depois de conhecer os cantos ao edifício, percebemos que é tudo: uma loja, um museu, um atelier e uma escola, todos dedicados à filigrana. É um verdadeiro centro da cultura portuguesa na Invicta. Até porque, além da filigrana, estes três edifícios na Rua das Flores - comprados e remodelados recentemente pelo grupo - têm ainda outras lojas dedicadas aos ovos moles, à sardinha em conserva e ao pastel de bacalhau com queijo da Serra da Estrela. E, num deles, é possível ver as bordadeiras que fazem tapetes de Arraiolos à mão.

"Para nós a Times Square portuguesa era a Rua das Flores, no Porto. Portanto, era mesmo um sítio que desejávamos para conseguir trazer Portugal para o centro do Porto"

“A grande missão do grupo O Valor do Tempo é o projeto de economia social. (…) Nós gostamos muito de olhar para quem está no início da cadeia de valor. Essa é a nossa génese: premiar as bases, dar-lhes visibilidade para que o mundo lhes reconheça a importância e a qualidade do seu trabalho”, afirma a responsável de comunicação do O Valor do Tempo, grupo português que, ao longo das últimas três décadas, abriu mais de 50 lojas com história, fábricas e museus, tendo já levado a sardinha portuguesa para o “centro do mundo”, Nova Iorque.

E promete não ficar por aqui. “Estamos sempre atentos, quer a edifícios antigos, quer a marcas com história”, bem como a “ícones nacionais que não são valorizados, que ninguém lhes dá o devido valor e atenção. E é precisamente aí, onde os outros não querem, que nós gostamos de estar”, refere Sónia Santiago nesta entrevista ao idealista/news para ler em seguida.

Edifícios no centro histórico do Porto
Edifícios na Rua das Flores, no Porto Créditos: O Valor do Tempo

A história do grupo O Valor do Tempo já conta com cerca de 30 anos. Tudo começou em Seia com o Museu do Pão. Já na altura a visão da empresa passava por unir tradição, história e artesanato? Porquê?

Podemos dizer que foi logo de início, porque o fundador do grupo O Valor do Tempo, António Quaresma, era professor de história. Continua a ter uma grande paixão por história e, portanto, quando começou a sua atividade, já não como professor, a incorporação da história no seu projeto foi algo que lhe foi muito natural.

"No fundo, é esse o nosso caminho: olhar para quem está no início da cadeia de valor e pô-los num palco a brilhar"

Recentemente, recuperaram três edifícios na Rua das Flores, no Porto, onde abriram quatro lojas: a Confeitaria Peixinho, o Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa, a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau e a Joalharia do Carmo. Como surgiu esta oportunidade de negócio?

Comprámos os edifícios que antes eram um armazém de têxtil-lar e funcionava com venda ao público. E houve, de facto, esta oportunidade de comprar os três edifícios lado a lado e que representam um investimento de cerca de 18 milhões de euros no centro histórico do Porto. Este era o sítio que nos fazia sentido, até porque já queríamos ter um grande projeto no Porto. Em 2023, abrimos uma loja em Times Square, em Nova Iorque, e para nós a Times Square portuguesa era a Rua das Flores, no Porto. Portanto, era mesmo um sítio que desejávamos para conseguir trazer Portugal para o centro do Porto. E como é que trouxemos Portugal? Com visibilidade para os artesãos, que normalmente são pessoas que ficam muito na sombra, nos bastidores, e queríamos pô-los na ribalta e dar-lhes a visibilidade que eles merecem. E foi isso que fizemos aqui, tendo havido todo um trabalho de organização dos espaços.

Artesanato em Portugal
Artesã de filigrana que trabalha à entrada do edifício Créditos: Gonçalo Lopes | idealista/news

Porque decidiram dar visibilidade aos artesãos no Porto? E de que forma?

A grande missão do grupo O Valor do Tempo é o projeto de economia social. E o que é que isto significa? Nós gostamos muito de olhar para quem está no início da cadeia de valor. No caso do queijo, que incorporamos no pastel de bacalhau, olhamos para os pastores. E olhamos para as conserveiras que preparam as conservas à mão, para as bordadeiras que bordam tapetes de Arraiolos à mão e para as doceiras que fazem os ovos moles também num processo absolutamente artesanal. E queríamos dar-lhes essa visibilidade, porque são sempre pessoas que ficam muito nos bastidores, normalmente não têm o palco que merecem. E essa é a nossa génese: premiar as bases, dar-lhes visibilidade para que o mundo lhes reconheça a importância e a qualidade do seu trabalho. Porque se não fossem as bases, não teríamos a filigrana, o queijo Serra da Estrela ou até as conservas. E, no fundo, é esse o nosso caminho: olhar para quem está no início da cadeia de valor e pô-los num palco a brilhar.

"Não basta ter um bom produto, é preciso ter uma boa história para contar que cative as pessoas"

Estes edifícios do Porto incluem lojas, museu, escola…. Quem é que mais vos visita? Fale-nos destes espaços.

Na verdade, toda a gente, porque estando nos centros das cidades, onde já passam milhares de pessoas todos os dias, pelo que recebemos portugueses, como recebemos estrangeiros. O turismo que circula em Portugal vem de todos os cantos do mundo. Somos um espaço que está de portas abertas para qualquer pessoa que nos queira visitar, quer seja ou não convertido em cliente. 

Além da joalharia, neste espaço temos uma exposição de filigrana, com joias e equipamentos muito antigos, que foram nos gentilmente cedidos pela Associação de Ourivesaria de Portugal e por um artesão de filigrana. Também temos um espaço que é dedicado a contrastaria da imprensa nacional da Casa da Moeda, que certifica as peças como verdadeiras e com quem estabelecemos um protocolo de cooperação. E temos também no piso de cima uma oficina de filigrana, onde trabalham 12 artesãos e que é possível visitar. E noutro piso superior temos uma escola de joalharia, tendo cedido o espaço ao CINDOR [Centro de Formação Profissional da Indústria Joalheira e Relojoeira], onde também há aulas abertas ao público para quem queira aprender um bocadinho mais sobre joalharia e, em particular, sobre filigrana.

Decoração de lojas
Entrada da Joalharia do Carmo, no Porto Créditos: Gonçalo Lopes | idealista/news

A decoração das vossas lojas é diferenciada. O que vos inspira? E o que querem transmitir? 

Sempre soubemos que tínhamos um bom produto, seja a filigrana, as conservas, o queijo…  Mas não basta ter um bom produto, é preciso ter uma boa história para contar que cative as pessoas. E é isso que fazemos nas nossas lojas: criamos ambientes para que a experiência de compra seja uma jornada encantadora, que se sintam bem nas nossas lojas e que queiram saber mais sobre o que está na origem de cada produto. Isso dá-nos a possibilidade de lhes contar a história das enchedeiras de filigrana, dos pastores da Serra da Estrela, das mulheres que estão na fábrica das conservas a preparar o peixe à mão. E, portanto, há toda uma fantasia que colocamos nas lojas, mas por detrás dessa fantasia há algo muito sério, que é a história que queremos contar destes artesãos.

No Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa fomos buscar a inspiração ao circo que, tal como a sardinha, é nobre e popular. E quisemos criar todo aquele ambiente mágico com muita cor, muita luz, objetos em movimento, e é isso que cativa os nossos clientes, além da história que contamos das conservas e das conserveiras.

"Precisávamos de contar a encantadora história da filigrana e foi no mundo mágico da Alice no País das Maravilhas que nos inspirámos"

A Joalharia do Carmo, na Rua das Flores, é um exemplo de decoração inspirada na fantasia, em particular na Alice nos País das Maravilhas. Porque decidiram fazê-lo?

A filigrana, sendo um produto muito tradicional, estava até há muito pouco tempo mal valorizado. Mas tem muito valor, é um símbolo da identidade nacional, com muitas histórias, sobretudo, no norte de Portugal. Só precisava dos holofotes em cima, de um palco para brilhar. E foi só isso que nós fizemos. Como no caderno de especificações da filigrana há a possibilidade de haver inovação, incorporámos um design mais contemporâneo e pedras preciosas. 

Precisávamos de contar a encantadora história da filigrana e foi no mundo mágico da Alice no País das Maravilhas que nos inspirámos para fazer pequenas cápsulas na loja onde os clientes possam quase entrar num mundo de fantasia e viver a filigrana com a dignidade que ela tem. 

Cultura portuguesa
Escada adornada com filigrana Créditos: Gonçalo Lopes | idealista/news

No prédio dedicado à ourivesaria e à filigrana, há uma escada em caracol adornada com ouro. Como surgiu este projeto e qual é o objetivo? 

No grupo O Valor do Tempo damos, de facto, muito valor ao tempo. Às vezes esquecemo-nos um pouco do nosso dia a dia que o tempo é precioso. A escada é a materialização dessa valorização do tempo. Criámos uma escada que é um esqueleto preparado para receber filigrana. Temos duas enchedeiras à entrada que estão a produzir filigrana e a nossa intenção é que a escada vá sendo preenchida ao longo dos anos. A filigrana é uma técnica de muita minúcia, até porque o fio de filigrana é tão fino quanto a espessura de um cabelo. A nossa estimativa é que demore 95 anos a concluir a escada que vai ter no final 313 quilómetros de fio, que curiosamente é quase a mesma distância que liga a Rua das Flores, no Porto, à Rua do Carmo, em Lisboa, onde nasceu a Joalharia do Carmo, em 1924. 

"Sempre que possível compramos [os edifícios] para termos autonomia na gestão dos espaços, embora também tenhamos espaços arrendados"

O que mudou na Baixa do Porto depois de terem aberto estas lojas com história? Há um antes e depois?

Acredito que sim, não só pela imensidão de pessoas que recebemos, mas também dos muitos comentários que recebemos de quem nos visita, que se mostram surpreendidos. Obviamente, também há um grande trabalho de formação das equipas para saber fazer um acolhimento com qualidade e com proximidade cordial. Temos tido muito bom feedback e isso tem-nos dado um grande alento de que a aposta foi certeira.

Produtos portugueses
Bordadeiras de tapetes de Arraiolos, no Porto Créditos: Gonçalo Lopes | idealista/news

Hoje, contam com um portefólio de marcas históricas espalhadas por vários pontos do país e até lá fora (Nova Iorque), desde joalharia, museus a produtos regionais…  Procuram abrir estes negócios, sobretudo, em imóveis com história? Costumam investir na compra dos imóveis ou arrendam? 

Como a nossa base é a história de Portugal, obviamente, adoramos marcas históricas. Em termos de edifícios, os centros da cidade são sempre bons. Normalmente escolhemos espaços onde as pessoas já passam naturalmente. Atualmente, o nosso grande esforço de marketing é na localização dos edifícios que, sempre que possível, compramos para termos autonomia na gestão dos espaços, embora também tenhamos espaços arrendados. E, depois, criar dentro desses espaços um ambiente que seja muito acolhedor e aprazível. Sem dúvida que a localização é primordial. 

"Estamos sempre atentos, quer a edifícios antigos, quer a marcas com história"

Há pouco tempo decidiram também comprar a mercearia Pérola do Bolhão, no Porto. Porquê?

A Pérola do Bolhão é uma marca também com dezenas de anos. É um ícone da cidade do Porto, tem uma fachada lindíssima em arte Deco. E achámos que era um marco para nós na cidade do Porto, uma vez que a base da nossa narrativa é, de facto, a história. E ter uma mercearia antiga era mesmo a cereja no topo do bolo no Porto.

Lojas históricas
Loja Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa, no Porto Créditos: Gonçalo Lopes | idealista/news

Estão atentos a negócios antigos que estão em vias de fechar muitas vezes pela venda dos imóveis ou subida das rendas?

Estamos sempre atentos, quer a edifícios antigos, quer a marcas com história. Obviamente, temos de ponderar sempre da oportunidade do negócio e verificar se encaixa bem na narrativa do grupo O Valor do Tempo. Mas estamos sempre atentos. É um grupo que, apesar de já ter 650 pessoas a trabalhar, o centro de decisão é célere e, portanto, as oportunidades surgem, analisamos e se fizer sentido vamos com alguma coragem, é certo.

Porque decidiram abrir uma loja do Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa em Nova Iorque? Como foi a experiência e qual é a recetividade? 

A loja de Nova Iorque funciona quase como uma embaixada emocional de Portugal, que quisemos colocar ali no centro do mundo. Sabíamos que tínhamos em mãos um produto que é um ícone nacional, tal como a filigrana, que é a sardinha portuguesa. Há muito tempo que o mercado norte-americano é muito recetivo à sardinha portuguesa, na qual revê muita qualidade, em particular, à sardinha de conserva. E quisemos fazer um ‘statement’ de que a sardinha é um produto muito popular, sim, mas tem o valor necessário para representar Portugal no centro do mundo, que é aquela praça icónica em Nova Iorque. Em Times Square, há muitas lojas de ‘souvenirs’ que acabam por ser muito idênticos entre si e nós quisemos trazer uma pérola para o meio daquele oceano. E criámos uma biblioteca conserveira, que é o conceito daquela loja, em que muitas vezes as pessoas nem percebem que estão a entrar numa loja de conservas e só o percebem depois. E essa reação é muito gira de observar. A loja tem corrido muito bem operacionalmente, mas é também um marco para Portugal, para a indústria conserveira portuguesa é para nós, grupo O Valor do Tempo, porque também tivemos muito mais visibilidade a partir desse momento.

Lojas portuguesas nos EUA
Loja do Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa em Nova Iorque Créditos: O Valor do Tempo

Têm mais lojas com história fora do país? Pretendem abrir mais alguma?

A loja de Times Square é a única loja temos fora de Portugal e temos 54 no total. Queremos continuar a crescer de forma consolidada e com sentido. De momento não temos previsto abrir outra loja internacional, mas connosco tudo é possível, a qualquer momento surge uma oportunidade.

"Achamos que Portugal tem muito para oferecer ao mundo"

Quais são os próximos passos que o grupo o Valor do Tempo planeia dar no futuro? Recuperar mais edifícios para abrir lojas com história está nos vossos planos? Se sim, fale-nos destes projetos.

Os planos para o futuro passam por estarmos atentos aos ícones nacionais que não são valorizados, que ninguém lhes dá o devido valor e atenção. E é precisamente aí, onde os outros não querem, que nós gostamos de estar. É mesmo às vezes uma questão de oportunidade e de percebermos que há ali algo que está desatendido, mas que tem muito valor e só precisa de um palco para brilhar. E isso é o que nos dá imenso gozo fazer: é pegar no produto popular, como a sardinha ou como a filigrana, e de repente, pôr o mundo a olhar para eles com olhos de quem os valoriza e aprecia.

A cultura portuguesa é extraordinária. Tem tanta história para contar e, às vezes, precisamos que venham pessoas de fora surpreender-se com aquilo que temos para repensarmos: ‘Se calhar temos aqui algo de muito valor que vale a pena olhar com outros olhos’. É isso que nós fazemos. Nós gostamos muito de Portugal, da história de Portugal, achamos que Portugal tem muito para oferecer ao mundo. Aliás, o mundo está rendido a Portugal e sabemos disso. Portanto, só temos mesmo de saber valorizar aquilo que já temos e mostrá-lo ao mundo com dignidade, com elevação, com originalidade. Mostrar Portugal como Portugal merece ser mostrado.

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