O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) resolveu uma questão que gerava interpretações divergentes: os animais de companhia transportados de avião devem ser incluídos no conceito de “bagagem”, de acordo com a Convenção de Montreal de 1999, o tratado internacional que unifica as normas sobre a responsabilidade das companhias aéreas em caso de perda, dano ou destruição de bagagem despachada.
A sentença, proferida a 16 de outubro, limita as indemnizações a um máximo de 1.288 Direitos Especiais de Saque (DES) (equivalentes a cerca de 1.600 euros), mesmo quando o passageiro alega danos morais.
A decisão não só unifica critérios em toda a União Europeia, como também reabre um debate: como se enquadra esta interpretação face à crescente consideração dos animais como seres sensíveis?
- Acórdão do Tribunal de Justiça da UE sobre animais de companhia e bagagem
- Os animais de companhia enquadram-se no conceito de bagagem
- Um equilíbrio entre os direitos do passageiro e a responsabilidade da companhia aérea
- Como se calcula o valor em euros segundo a Convenção de Montreal?
- Diferença entre o transporte de animais como bagagem e como carga
- Bem-estar animal e limites de responsabilidade segundo o TJUE
- Limites à indemnização pela perda de animais de estimação em voos
- O estatuto jurídico dos animais no transporte aéreo
- 5 mitos sobre o acórdão do Tribunal de Justiça da UE e os animais de companhia
- “O TJUE disse que os animais são como objetos”
- “As companhias aéreas podem tratar os animais como malas”
- “A sentença anula a consideração dos animais como seres sensíveis”
- “Transportar um animal de estimação como carga garante uma indemnização maior”
- “A declaração especial de valor não serve para proteger o componente afetivo”
Acórdão do Tribunal de Justiça da UE sobre animais de companhia e bagagem
O caso que deu origem a esta decisão começou em 2019, quando uma passageira embarcou num voo de Buenos Aires para Barcelona com a sua cadela, transportada no porão do avião dentro de uma transportadora. O animal conseguiu escapar do contentor e desapareceu sem deixar rasto.
A proprietária apresentou uma ação no Juízo de Comércio n.º 4 de Madrid, reclamando 5.000 euros por danos morais. A Iberia reconheceu a sua responsabilidade, mas defendeu que a Convenção de Montreal estabelecia um limite máximo de 1.288 Direitos Especiais de Saque (DES) por passageiro, aplicável a toda a bagagem despachada, independentemente do número de volumes ou, neste caso, do animal transportado.
O tribunal madrileno decidiu então submeter uma questão prejudicial ao TJUE, a fim de esclarecer se um animal de companhia poderia ser considerado “bagagem” para efeitos da Convenção.
Os animais de companhia enquadram-se no conceito de bagagem
O TJUE analisou os artigos 17.2, e 22.2, da Convenção, que constituem os pilares que estabelecem o regime de responsabilidade objetiva das companhias aéreas perante a perda, destruição ou dano da bagagem sob a sua custódia.
De acordo com o artigo 17.2, a companhia aérea é objetivamente responsável enquanto a bagagem estiver sob a sua guarda, ficando isenta de responsabilidade apenas quando comprova que o prejuízo se deveu a uma causa inerente à própria bagagem — algo que, no caso dos animais, se aplicaria apenas em situações excecionais, como uma doença pré-existente ou um defeito da transportadora.
O Tribunal de Justiça recordou que a Convenção não define o termo “bagagem” e que, por isso, este deve ser interpretado segundo o seu sentido comum e de forma uniforme em todos os Estados-Membros.
O texto original da Convenção fixava um limite de 1.000 Direitos Especiais de Saque (DES), mas a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) atualizou-o em 2019 para 1.288 DES e, mais recentemente para 1.519 DES, em conformidade com o artigo 24.º, que prevê a sua revisão periódica. Atualmente, o novo montante equivale a cerca de 1.860 euros.
Embora o termo “bagagem” se refira habitualmente a objetos ou pertences pessoais, os juízes europeus concluíram que não existe base jurídica para excluir os animais de companhia. A Convenção apenas distingue entre pessoas, bagagem e carga.
Em consequência, os animais de estimação transportados em voos internacionais devem ser considerados incluídos no conceito de bagagem despachada. Esta interpretação unifica a prática jurídica em toda a Europa e clarifica o alcance da responsabilidade das companhias aéreas.
Um equilíbrio entre os direitos do passageiro e a responsabilidade da companhia aérea
O TJUE sublinha que a Convenção de Montreal procura manter um equilíbrio uniforme à escala internacional entre os direitos dos passageiros e as obrigações económicas das companhias aéreas. O limite não visa apenas agilizar as reclamações, mas também garantir a segurança jurídica e a sustentabilidade económica do transporte aéreo.
O TJUE reafirma assim a sua jurisprudência anterior, recordando que o limite é absoluto, salvo se o passageiro tiver feito uma declaração especial de valor antes do voo. Na ausência dessa declaração, o limite de 1.288 Direitos Especiais de Saque (DES), atualmente 1.519 DES, cobre tanto os danos materiais como os morais.
Como se calcula o valor em euros segundo a Convenção de Montreal?
El Direito Especial de Saque é uma unidade de conta criada pelo Fundo Monetário Internacional. Os DES não são uma moeda, mas o seu valor baseia-se num cabaz composto por cinco moedas: o dólar dos EUA, o euro, o renminbi chinês, o iene japonês e a libra esterlina.
Se 1 DES equivale a 1,23 euros, o limite atual de 1.519 DES corresponderia a 1.862 euros. O montante exato varia consoante a taxa de câmbio publicada pelo FMI no dia do sinistro.
Diferença entre o transporte de animais como bagagem e como carga
Quando o animal viaja como bagagem, fá-lo sob o bilhete do passageiro e fica abrangido pelo regime do artigo 17.º. Se, pelo contrário, for transportado como carga, aplica-se o disposto no artigo 18.º da Convenção, que prevê um regime de responsabilidade distinto.
Esta modalidade costuma implicar um acompanhamento especializado, seguro alargado e maior controlo logístico, embora tenha custos e requisitos mais elevados. É geralmente reservada para animais de grande porte ou transportes internacionais complexos.
Bem-estar animal e limites de responsabilidade segundo o TJUE
O TJUE esclarece que o reconhecimento dos animais como seres sensíveis, previsto no artigo 13 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) não altera o regime indemnizatório estabelecido pela Convenção de Montreal.
Ambos os quadros jurídicos coexistem: o bem-estar animal deve ser respeitado durante o transporte, mas as regras relativas à responsabilidade económica e aos limites de indemnização aplicam-se de acordo com o referido tratado internacional. Por outras palavras, o facto de os animais serem seres sensíveis não altera o regime jurídico que limita as indemnizações pela sua perda ou dano.
Limites à indemnização pela perda de animais de estimação em voos
Com esta decisão, o TJUE põe fim a anos de divergência interpretativa entre os tribunais nacionais e estabelece um critério uniforme para toda a União Europeia: os animais de companhia transportados em voos internacionais são considerados bagagem despachada para efeitos de responsabilidade.
Esta interpretação reforça a aplicação uniforme da Convenção de Montreal e oferece segurança jurídica tanto aos passageiros como às companhias aéreas. Em caso de perda, dano ou morte do animal, a indemnização máxima será o montante (atualizado) previsto no artigo 22.2, salvo se o passageiro tiver feito uma declaração especial de valor antes do voo.
O estatuto jurídico dos animais no transporte aéreo
Embora o acórdão se centre na interpretação técnica da Convenção de Montreal, deixa em aberto um debate de fundo: de que forma conciliar o reconhecimento dos animais como seres sensíveis com um quadro internacional que, para efeitos contratuais, os equipara à bagagem. O equilíbrio entre bem-estar, responsabilidade e segurança jurídica continua a ser um dos grandes desafios do Direito europeu do transporte aéreo.
5 mitos sobre o acórdão do Tribunal de Justiça da UE e os animais de companhia
Como não podia deixar de ser, a decisão de considerar os animais de companhia como “bagagem” gerou manchetes, debate e também alguma confusão. Por isso, vamos desmistificar algumas das falsas crenças que circulam sobre este acórdão:
“O TJUE disse que os animais são como objetos”
Tanto o artigo 333 bis do Código Civil espanhol como o artigo 13.º do TFUE reconhecem os animais como seres vivos dotados de sensibilidade. O Tribunal de Justiça da União Europeia não põe em causa esta condição, limitando-se a definir o regime jurídico aplicável quando um animal viaja de avião e sofre algum dano.
O acórdão restringe-se a interpretar o alcance económico da Convenção de Montreal, sem alterar o estatuto jurídico ou moral dos animais, estabelecendo que os animais de companhia se incluem no conceito de “bagagem”.
O seu objetivo é definir os limites da indemnização em caso de perda ou dano durante o voo, incidindo apenas sobre a responsabilidade económica, sem se pronunciar sobre a sensibilidade nem sobre o valor moral do animal.
“As companhias aéreas podem tratar os animais como malas”
Embora a Convenção de Montreal regule a compensação por perda ou dano, não elimina as obrigações de bem-estar animal que recaem sobre as companhias aéreas. O TJUE recorda que o artigo 13.º do TFUE obriga os Estados e as empresas a respeitar o bem-estar dos animais.
Além disso, as companhias aéreas devem cumprir rigorosamente a legislação europeia e nacional sobre bem-estar animal, como o Regulamento (CE) nº 1/2005 do Conselho, relativo à proteção dos animais durante o transporte, e a Lei 7/2023 de proteção dos direitos e bem-estar dos animais.
Estas normas impõem condições relativas à ventilação, temperatura, dimensões da transportadora, manipulação e controlo veterinário. O seu incumprimento pode gerar responsabilidade administrativa ou civil por negligência, bem como sanções por violação da legislação de bem-estar animal.
“A sentença anula a consideração dos animais como seres sensíveis”
O TJUE cita expressamente o artigo 13.º do TFUE, que reconhece os animais como seres sensíveis, cujo bem-estar deve ser tido em conta nas políticas europeias. O que a decisão faz é distinguir dois planos diferentes do direito: por um lado, o bem-estar animal, protegido pela legislação comunitária e nacional; e, por outro, o regime indemnizatório, regulado pela Convenção de Montreal.
Ambos coexistem sem contradição: o estatuto dos animais como seres sencientes mantém-se, mas a compensação económica pela sua perda rege-se pelas normas de transporte internacional.
“Transportar um animal de estimação como carga garante uma indemnização maior”
O transporte de um animal como carga não implica automaticamente uma indemnização mais elevada. Simplesmente fica sujeito a um regime contratual diferente, geralmente mais caro e com seguros e controlos específicos.
No transporte como carga, as condições são acordadas individualmente com a companhia aérea ou com um operador logístico, podendo incluir seguimento, seguro alargado e manuseamento especializado.
No entanto, a Convenção de Montreal, no seu artigo 18.º, também estabelece limites de responsabilidade para o transporte de carga. O valor dependerá do contrato de transporte, do valor declarado e de se existir culpa ou negligência grave por parte do transportador. Assim, transportar um animal como carga não garante necessariamente uma indemnização superior, mas sim um regime jurídico diferente.
“A declaração especial de valor não serve para proteger o componente afetivo”
A declaração especial de valor tem como objetivo aumentar o limite da indemnização, mediante o pagamento de um suplemento. Embora o valor declarado deva ser expresso em termos económicos, na prática permite cobrir o conjunto dos prejuízos sofridos, incluindo, se for devidamente quantificado, o componente afetivo.
Este mecanismo é o meio previsto pela Convenção para ultrapassar o limite geral. Por isso, é recomendável declarar um valor superior sempre que a bagagem — ou o animal de estimação — tenha um elevado valor económico ou emocional.
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