Após dois anos do Simplex Urbanístico em vigor, Governo anuncia profunda reformulação do regime. Explicamos com fundamento jurídico.
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Simplex urbanístico
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PRA - Raposo, Sá Miranda & Associados
PRA - Raposo, Sá Miranda & Associados (Colaborador do idealista news)

O ano de 2026 promete ser um novo ponto de inflexão na arquitetura legislativa do urbanismo português. Após dois anos de vigência do Simplex Urbanístico de 2024, o Governo anuncia uma profunda reformulação do regime, prometendo uma “segunda geração” de simplificação administrativa. 

“Esta revisão visa corrigir disfunções operacionais do modelo anterior – designadamente a heterogeneidade de aplicação municipal, o défice de interoperabilidade digital e a insegurança jurídica gerada por interpretações divergentes do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) reformado. Todavia, o que se apresenta como mera atualização técnica encerra uma mutação estrutural do próprio conceito de licenciamento urbanístico”, começa por explicar Mário Longras, associado principal de Imobiliário da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, neste artigo preparado para o idealista/news.  

De acordo com o especialista, a proposta de alteração legislativa, além do (maior) encurtamento de prazos de decisão, prevê que a generalidade dos atos de urbanização e edificação transitem para um regime de autorização tácita reforçada, em que o silêncio da Administração adquire força quase definitiva, mesmo perante a falta de pareceres externos. 

“O objetivo declarado é eliminar ‘entropias procedimentais’ e acelerar o investimento. Mas, por detrás do léxico da eficiência, esconde-se uma preocupação mais profunda: a erosão do princípio da legalidade material e o enfraquecimento do controlo público prévio. O licenciamento urbanístico sempre foi um instrumento de ponderação entre interesses privados e valores coletivos – território, ambiente, património –, e a sua substituição por um automatismo procedimental pode comprometer esse equilíbrio”, salienta. 

Construção de casas em Portugal
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O que está em vias de mudar?

Do ponto de vista digital, entrará já em vigor no próximo ano a chamada PEPU (Plataforma Eletrónica de Procedimentos Urbanísticos) e integrará, num só sistema, as bases de dados da DGPC, da APA, do ICNF e das CCDR. “Trata-se de uma ambição louvável em teoria, mas de execução complexa na prática: a interoperabilidade exige não apenas compatibilidade técnica, mas também uniformização de critérios decisórios e clareza quanto à hierarquia entre pareceres vinculativos. O legislador parece confiar excessivamente na tecnologia para resolver problemas essencialmente jurídicos – como a definição de prazos, o alcance dos pareceres e a responsabilidade em caso de omissão eletrónica”, comenta Mário Longras.

Outro eixo de reforma incide sobre o planeamento urbano: pretende-se introduzir um mecanismo de “compatibilização automática” entre os instrumentos de gestão territorial, dispensando revisões formais sempre que alterações setoriais ocorram. Embora se pretenda reduzir morosidade, esta solução dilui a função estruturante do plano, transformando-o num documento de atualização permanente e instável. A segurança jurídica dos particulares, dependente da previsibilidade normativa, arrisca ser substituída por um modelo de adaptação contínua e opaca.

Simplex urbanístico
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Simplificação administrativa tem perigos?

O novo Simplex propõe ainda reforçar a valorização das áreas urbanas consolidadas e a habitação acessível, mediante tramitação prioritária e benefícios fiscais. No entanto, esta política de incentivos pode acentuar o fosso entre municípios com maior capacidade técnica e financeira e aqueles onde os serviços de urbanismo continuam subdimensionados. A simplificação administrativa, quando aplicada de forma desigual, não é sinónimo de equidade territorial: é antes um fator de assimetria.

Para os operadores jurídicos, o regime de 2026 exigirá uma nova abordagem interpretativa. A substituição da lógica de licenciamento pela lógica de responsabilidade técnica direta desloca o centro de gravidade do controlo público para o domínio da auto-verificação privada, reforçando o papel dos projetistas e técnicos responsáveis, mas também ampliando o risco de litígios futuros. A clareza normativa será determinante para evitar que a “celeridade” se traduza em contencioso acrescido.

No plano político, esta reforma insere-se numa narrativa de modernização e confiança no cidadão, mas o seu sucesso dependerá menos da retórica da simplificação e mais da capacidade institucional do Estado. A verdadeira digitalização não é a mera submissão eletrónica de processos, mas a reconfiguração dos fluxos de decisão e da responsabilização administrativa.

“Em suma, o Simplex Urbanístico 2026 é uma tentativa ambiciosa de reescrever a relação entre Estado, município e cidadão no domínio do urbanismo. Mas o risco é que, em nome da celeridade, se sacrifique o essencial: o controlo da legalidade, a coerência do ordenamento e a proteção do interesse público. A simplificação não pode ser um eufemismo para desregulação. O futuro dirá se este novo ciclo será, de facto, um avanço institucional – ou apenas mais um episódio na longa história de reformas que prometem muito e cumprem pouco”, conclui Mário Longras.

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