O idealista/news ouviu várias especialistas para perceber o que será, afinal, uma cidade construída para todos (e por todos).
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A maioria dos centros urbanos ainda são maioritariamente planeados, estruturados e governados por homens. A representação feminina já não é uma miragem, mas ainda há um caminho a percorrer para incluir mais mulheres - arquitetas, engenheiras, urbanistas – na construção do espaço público. Eva Kail, Anne Hidalgo ou Ada Colau são (alguns) exemplos de rostos femininos que mudaram as “regras do jogo” no planeamento e gestão das cidades. Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, o idealista/news ouviu especialistas sobre o tema. Afinal, como seria uma cidade construída para todos (e por todos)?

O urbanismo não é apenas uma disciplina técnica, mas também uma ferramenta social e política que molda a qualidade de vida das pessoas. Um olhar feminino sobre o urbanismo está, por isso, frequentemente associado a soluções que favorecem a acessibilidade, a mobilidade sustentável e o desenho de espaços mais acolhedores e seguros. A sensibilidade para integrar diferentes grupos populacionais — incluindo crianças, idosos e pessoas com deficiência — é uma característica inerente, que permite a criação de ambientes urbanos mais equitativos. Mas não só. 

Um olhar feminino sobre a cidade

A arquiteta Maria Fradinho, do atelier Frari, não tem dúvidas de que as decisões urbanísticas são, em grande parte, políticas, e que a desigualdade de género nos cargos de decisão impacta diretamente o desenvolvimento das cidades. Defende que deveria haver equidade na liderança, pois homens e mulheres trazem perspetivas complementares para a construção de um urbanismo mais inclusivo. Além disso, reforça a necessidade de um planeamento urbano antecipado, baseado na investigação e na inovação, para garantir o equilíbrio entre desenvolvimento tecnológico e sustentabilidade.

“Defendo que deveria, portanto, haver mais mulheres nestes cargos, mas que tanto homens como mulheres tenham efetivamente conhecimentos da área de arquitetura e urbanismo, pois representaria logo à partida a aposta na investigação, no estudo, na antecedência da evolução das cidades. Trabalhar a montante dá uma projeção sobre onde investir, e onde não investir, e não falo apenas no investimento financeiro, mas sim no investimento de tempo, de recursos, das decisões sobre que caminho/s seguir”, refere, acrescentando que a “urbanidade é complexa e carece de decisões multidisciplinares que a possam acompanhar, mas o conhecimento da área de arquitetura e urbanismo é fundamental para a tomada de decisões sobre os espaços”.

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A cofundadora do atelier MJARC Arquitetos Associados, Maria João Andrade, reforça a ideia de que a representatividade feminina no urbanismo não se trata apenas de uma questão de equidade, mas de qualidade de vida. Quando as mulheres assumem um papel ativo na conceção das cidades, surgem soluções mais seguras e confortáveis, como a promoção de bairros mistos que integram habitação, comércio e lazer, reduzindo deslocações desnecessárias e fomentando o desenvolvimento sustentável.

“É um facto bem conhecido que as mulheres são subrepresentadas no ambiente construído, mas não é apenas uma questão de representatividade, mas sim de um melhor planeamento para todos, pois quando diferentes perspetivas são consideradas, as cidades tornam-se mais seguras, confortáveis e eficientes. E por isso, mais inclusivas”, frisa a arquiteta.

Os principais desafios, acredita, residem na “criação de programas que apoiem a progressão na carreira; desenvolvimento de políticas inclusivas de género no planeamento urbano; promoção de ambientes de trabalho flexíveis que apoiem o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal e, por fim, aumentar a visibilidade das mulheres líderes em arquitetura, urbanismo e engenharia”.

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Uma opinião partilhada por Mariana Morgado Pedroso, da Architect Your Home (AYH). A arquiteta não tem dúvidas de que "a participação de mais mulheres no setor do urbanismo e construção tem o potencial de transformar significativamente o design e a funcionalidade das cidades, trazendo benefícios para a sociedade como um todo". 

"As mulheres muitas vezes adotam uma abordagem mais colaborativa e holística em relação à resolução de problemas. Isso pode favorecer soluções urbanísticas mais integradas, que envolvem diferentes grupos da sociedade e procuram resolver os desafios de forma multifacetada e equitativa. Ao aumentar a representatividade feminina nas decisões urbanísticas, há um potencial para reduzir as desigualdades de género no espaço público", frisa.

Filipa Arantes Pedroso, advogada e presidente da WIRE (Women in Real Estate) Portugal, que muito recentemente promoveu um debate sobre “O papel das mulheres na evolução das cidades”, no âmbito da Semana da Reabilitação Urbana de Lisboa (SRU), é da opinião que “não existem ainda muitas mulheres as áreas de engenharia e construção, áreas que são de facto áreas dominadas pelos homens”. “Diria que engenheiras começam a existir algumas, excelentes profissionais, mas é muito difícil entrarem na área da construção. Com o tempo lá chegaremos”, defende. 

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No que diz respeito ao planeamento urbano, a responsável destaca que as mulheres tendem a priorizar elementos essenciais como a segurança, a mobilidade e a acessibilidade. Estas preocupações, diz, refletem-se na implementação de iluminação pública adequada, calçadas mais amplas e melhor transporte público, garantindo maior autonomia para crianças, idosos e pessoas com deficiência. “A participação das mulheres, arquitetas e engenheiras, com a sua maneira de pensar, terá certamente um impacto importante nas habitações, infraestruturas e moradias mais funcionais e acessíveis à família”, sublinha.  

A arquiteta da AYH considera ainda essencial que as "decisões sobre o planeamento urbano sejam tomadas de forma participativa para garantir que temos uma cidade igualitária, envolvendo os cidadãos em todas as fases do processo, desde o design até a implementação".

"Em termos urbanísticos também é importante garantir que as infraestruturas de saúde (hospitais, clínicas e postos de saúde) estejam bem distribuídas pela cidade e sejam de fácil acesso para todas as pessoas, principalmente as de áreas periféricas. Isso pode ser atingido criando cidades mais compactas e descentralizadas, com acesso mais próximo a serviços essenciais, o que reduziria a necessidade de grandes deslocações. A mobilidade urbana é um dos maiores desafios do crescimento das cidades", argumenta Mariana Morgado Pedroso.

Melhorar a qualidade de vida (de todos)

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente 55% da população mundial vive em áreas urbanas e a expectativa é de que esta proporção aumente para 70% até 2050. As especialistas consideram que existem mudanças na forma como cidades são projetadas e construídas que poderão potenciar e melhorar a qualidade de vida. Além disso, com o crescimento das cidades, a sustentabilidade ambiental torna-se um desafio crítico. 

Para melhorar a qualidade de vida, "é crucial que as cidades sejam projetadas de forma a incluir todas as camadas sociais, independentemente de sua renda, etnia ou status", na visão de Mariana Morgado Pedroso. "As cidades devem ser mais acessíveis, oferecendo espaços e recursos para todos, como habitação de qualidade, garantindo que a construção de novas habitações seja acessível e que as existentes sejam renovadas de forma sustentável e adequada ao futuro", defende. 

Para Maria João Andrade, “o futuro das cidades depende de uma abordagem holística abordada por ambos os géneros garantindo o equilíbrio entre crescimento, sustentabilidade e qualidade de vida”. Para isso, entre várias medidas, a arquiteta defende a expansão de áreas verdes, parques e coberturas verdes para melhorar a qualidade do ar e reduzir o efeito de estufa; mais ciclovias e ruas pedonais, incentivando a mobilidade verde; o uso de tecnologias para monitoramento e gestão eficiente de tráfego, energia e segurança; a construção de bairros mistos, onde habitação, comércio e lazer coexistem e garantem a redução das deslocações; além da digitalização de serviços públicos para facilitar acesso e eficiência.

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“O futuro das cidades depende da aposta no planeamento antecipado, com colaboração entre as partes governantes, empresas e cidadãos, com soluções integradas e equilibradas com conhecimento e investigação multidisciplinares e grande investimento na inovação, de forma a fazer face a esse aumento da densidade populacional, e aos demais grandes desafios da atualidade, nomeadamente as alterações climáticas, o desemprego que se anuncia fruto da propagação da inteligência artificial e consequente aumento da desigualdade social, entre outros”, acrescenta Maria Fradinho. 

Para a arquiteta, as cidades devem ser planeadas de forma mais compacta e acessível, com estratégias de uso eficiente do solo, sendo fundamental “trabalhar no sentido de reverter a expansão desordenada a que temos assistido nas últimas décadas em Portugal”.

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“Obviamente que parte desse planeamento deve assegurar, por um lado a sustentabilidade, promovendo a preservação e o contacto do ser humano com a natureza, e por outro a evolução tecnológica, onde que a inteligência artificial certamente colaborará, nomeadamente usufruindo das vantagens da mobilidade elétrica integrada e sinalética e serviços inteligentes, para garantir qualidade de utilização dos espaços e edifícios a um maior número de pessoas. Isto porque acredito que os edifícios devem ser cada vez mais compactos e multifuncionais”, salienta. 

Uma opinião partilhada pela presidente da WIRE, para quem as “cidades têm de ter mais zonas verdes amplas, e bairros onde as famílias consigam viver sem grandes problemas, perto de supermercados e mercados com comida biológica, campos de desporto, escolas, transportes, boas acessibilidades, segurança e iluminação”. Além disso, a responsável considera que a convivência entre jovens e idosos pode ser benéfica para ambos, promovendo troca de experiências e bem-estar. Residências estudantis próximas a lares de idosos ativos podem estimular essa interação, proporcionando companhia, aprendizagem mútua e um ambiente mais dinâmico para todas as gerações.

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Mariana Morgado Pedroso refere que as mulheres, de facto, podem trazer uma perspetiva diferente sobre necessidades e usos do espaço urbano. "Podem ter mais sensibilidade às questões de segurança, acessibilidade e mobilidade, levando a uma maior consideração dos espaços públicos, como ruas mais iluminadas, áreas de lazer mais seguras, espaços infantis/para a família mais abrangentes e o design de transporte público mais inclusivo". Assim como influenciar o "foco em projetos que melhorem o bem-estar dos cidadãos, como o aumento de áreas verdes, espaços para atividades físicas e culturais, além de espaços de convivência que atendam a diferentes tipos de necessidades (como creches e locais para mães com crianças pequenas)".

"As mudanças que mais gostaria de ver envolvem a criação de cidades mais verdes, inteligentes e inclusivas, com um foco claro em melhorar a qualidade de vida de todos os seus habitantes. A implementação dessas ideias contribuiria para ambientes urbanos mais equilibrados, sustentáveis e saudáveis para todos", acrescenta.

Mulheres que transformaram o urbanismo

Várias cidades pelo mundo já colhem os benefícios de uma abordagem urbana mais inclusiva, impulsionada por mulheres. Em Viena, a urbanista e engenheira Eva Kail foi pioneira na integração da perspetiva de género no planeamento urbano. Desde a década de 1990, tem liderado iniciativas que transformaram a capital austríaca num exemplo de urbanismo inclusivo e igualitário, servindo de modelo para outras cidades que procuram promover a igualdade de género através do planeamento urbano. A comunidade de Aspern Seestad, visitada pelo The New York Times, é um exemplo de um dos maiores projetos de desenvolvimento urbano da Europa, nomeadamente na conceção de espaços públicos que atendem às necessidades de todos os cidadãos. 

Eva Kail
Eva Kail Créditos: Imoisset_cc_by-sa_4.0

Em 1992, Kail Criou o "Departamento de Mulheres” (Frauenbüro) em Viena, com o objetivo de coordenar políticas orientadas para as mulheres e promover a igualdade de oportunidades – antes de ser inaugurado, oficialmente, o “Departamento de Género”. Este gabinete implementou mais de 60 projetos-piloto sob a perspetiva de género, incluindo melhorias na iluminação pública, alargamento de passeios, instalação de mais bancos e projetos de habitação social concebidos por e para mulheres.

Outro dos projetos emblemáticos liderados por Kail foi o Frauen-Werk-Stadt (Cidade-Trabalho-das-Mulheres), um complexo habitacional de 357 unidades concluído em 1997. Este empreendimento destacou-se por incorporar uma perspetiva feminina abrangente, desde espaços para armazenamento de carrinhos de bebé em todos os andares até layouts flexíveis e edifícios de altura limitada para garantir a segurança e a vigilância natural das ruas.

Ada Colau tornou-se a primeira mulher a ser presidente da Câmara de Barcelona (entre 2015 e 2023) e revolucionou a cidade com o conceito dos “superblocos”, agrupando quarteirões e restringindo o tráfego automóvel em determinadas zonas e devolvendo as ruas aos cidadãos. Esta abordagem não só aumentou as áreas verdes e a qualidade do ar, como incentivou a interação social e a dinamização do comércio local.

Ada Colau
Ada Colau Créditos: CC _by-sa_4.0_by_guillemmedina

Também enfrentou desafios significativos, como a crise habitacional e o turismo excessivo. Implementou medidas para aumentar a oferta de habitação social e regulou o mercado de arrendamentos turísticos, procurando um equilíbrio entre os interesses dos residentes e a indústria do turismo, deixando um legado que é visto como uma amostra de como as cidades deveriam ser no futuro.

Já em Paris, Anne Hidalgo tem liderado uma transformação urbana voltada para a sustentabilidade e mobilidade ativa. A criação de mais ciclovias, a restrição do tráfego automóvel e a aposta em espaços verdes são algumas das suas políticas para tornar Paris uma cidade mais sustentável e habitável. 

Anne Hidalgo
Anne Hidalgo Créditos: CC_by-sa_3.0_by_ines_dieleman

Uma das iniciativas emblemáticas de Hidalgo é a promoção do conceito de "cidade de 15 minutos", inspirado no urbanista colombiano Carlos Moreno, investigador de renome internacional e conselheiro de planeamento urbano da autarca. Este modelo será a base da revolução urbana, aquela que permite ao cidadão ter as necessidades essenciais garantidas a uma distância a pé de apenas 15 minutos. 

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