Artista cubano vence Prémio idealista de Arte Contemporânea 2022. E a sua obra que denuncia o regime de Cuba está no SIL.
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Arte cubana
Hamlet Lavastida, artista cubano vencedor do Prémio idealista de Arte Contemporânea 2022 idealista
Carlota Morán

Estas obras de arte denunciam o regime cubano. E o seu autor é Hamlet Lavastida, um artista de Havana que foi preso mais do que uma vez em Cuba devido ao teor do seu trabalho. Mas ninguém fica indiferente às histórias que conta sobre o seu país: as suas obras já deram a volta ao mundo e foram exibidas em cidades como Montreal, Miami ou Berlim, locais onde também viveu exilado depois de sair da prisão.

Este artista cubano acaba de receber o Prémio idealista de Arte Contemporânea 2022. E este ano a sua obra denominada “República Penitenciária” integra o Salão Imobiliário de Lisboa (SIL) que arranca esta quinta-feira, 12 de maio, na Feira Internacional de Lisboa (FIL).

O idealista/news teve a oportunidade de conhecer o artista que ganhou prémio do idealista, a sua obra e a forma como o público europeu interpretou o seu trabalho. Vem daí descobrir a sua história e o que representa o seu trabalho.

Obras sobre Cuba
Hamlet Lavastida e a sua obra Peter Rosemann

Como define o fio condutor do seu trabalho artístico?

Tem que ver com uma tese fundamental que é a memória histórica. Trata o entendimento da história cubana, mas também as suas conexões com o mundo do socialismo, com a União Soviética e todos esses laços que revelam pouco da memória do próprio socialismo cubano. A partir daí procuro entender como a memória histórica se pode articular através do design, da pintura e outras formas de expressão da arte contemporânea.

"A minha obra também fala sobre o Governo cubano, que existe há quase 70 anos, e trata de lutar contra estereótipos culturais que não refletem a realidade".

A minha obra também fala sobre o Governo cubano, que existe há quase 70 anos, e trata de lutar contra estereótipos culturais que não refletem a realidade. Sempre defini o meu trabalho como um arquivo de memórias, onde procuro incluir não só minha sensibilidade, mas também outras histórias, no plural, porque não há apenas uma história de Cuba, há muitas.

A sua arte esteve sempre muito focada na denúncia social e política. Qual é o aspeto deste cenário que continua a inspirá-lo a criar novas obras?

A desinformação. Em Cuba há tanto para dizer... porque na verdade nada foi dito. Sabe quantos artistas foram presos? Muitos intelectuais sofreram com a deterioração deste Governo e com as suas más políticas, com a violência quase tangível, com o crime e a morte e com tudo, tudo o que o Governo cubano faz. As vítimas não são apenas os opositores políticos, mas também artistas que, por pensarem ou terem uma ideia diferente de como entender o fenómeno cubano, já estão em perigo.

Dentro do campo cultural, a repressão tem sido vasta e dura, e alguém tem que falar sobre isso. Eu faço isso do ponto de vista artístico, acho que é uma forma de fazer um ensaio visual sobre essas outras histórias que ainda não foram contadas. A repressão cultural é o que mais me interessa.

O que há pode detrás da obra “2239” e da obra “República Penitenciaria”?

A primeira é uma alegoria ao número que me atribuíram na prisão quando fui preso. E quanto ao trabalho que vai ser apresentado no stand do idealista, "República Penitenciária", a ideia é entender Cuba como uma república onde há penitência, cativeiro, onde cada ação, cada comportamento é monitorado e disciplinado pelo Estado.

“Toda a gente é um potencial criminoso em Cuba. Este foi o meu caso, mas também pode ser o teu se fores lá ou de qualquer um”

Tem que ver com mostrar a experiência pessoal que é, por sua vez, a experiência coletiva e social. Toda a gente é um potencial criminoso em Cuba. Este foi o meu caso, mas também pode ser o teu se fores lá ou de qualquer um.

O meu trabalho pensa nos prisioneiros de ontem e de hoje, mas também nos reclusos do futuro. Numa sociedade totalitária, tu sabes que algum dia vais ser preso e, por isso, tens de te precaver tendo em atenção os teus próprios gestos, a tua conduta, o que vais dizer. Senão, um dia és cidadão e no outro passas a ser recluso. É algo muito duro de lidar e deve ser comunicado. É por isso que os cubanos saem de Cuba e não voltam, porque sabem que um dia poderão ser presos.

Porque é que optou por utilizar construções arquitetónicas no projeto?

Trata-se de dar a conhecer os edifícios onde se vai parar e que acabam por tornar-se as casas dos reclusos. Tenho um texto que denuncia pouco tudo isso e chama-se também ‘República Penitenciária’. O mais curioso de tudo o que já fiz é esta série antes de entrar na prisão: fiz a planta da Villa Marista em 2019 e fui lá parar. E mais: dois anos depois acabei preso na mesma prisão, que representava o meu trabalho na época.

E o que significou para si ganhar o prémio idealista?

Uma surpresa porque é o primeiro prémio que ganhei na minha vida. Foi fantástico porque é sempre uma forma de estimular o nosso trabalho. E permite saber que o teu trabalho vai mais além e terá outra visibilidade. Além disso, tenho muito interesse em expor o meu trabalho em espaços que não sejam só artísticos. Em Cuba, sempre trabalhei em espaços públicos, na rua, em oficinas de mecânica...

É uma obra muito conceptual, mas ao mesmo tempo muito ilustrativa e didática. Pode ser explicada tanto para uma criança como para uma pessoa que não sabe nada sobre o assunto, porque é exatamente disso que se trata, contar coisas que não se sabe.

E acredito que haja aspetos que podem ser desconhecidos tanto para ti como para alguém de Cuba. Os próprios cubanos não conhecem (ou reconhecem) muitas das coisas com que lido. Há que ser capaz de explicar isto em qualquer lugar e para qualquer pessoa de uma forma mais eloquente, esse é o desafio.

O seu trabalho vai ser exposto esta semana no Salão Imobiliário de Lisboa (SIL). O que espera transmitir às pessoas que o visitam? Porque, como disse, não é um ambiente puramente artístico.

Sim, espero poder mostrar às pessoas as outras histórias de que falo e a forma como se monta um arquivo pessoal, porque isto também é algo que faço com as minhas próprias mãos.

"Sempre pensei que em grandes projetos coletivos não é necessário tanta grandiloquência, não é necessário que Fidel Castro esteja ali, na frente de uma varanda, a falar para milhares de pessoas"

Só o facto de o idealista já me ter premiado é ótimo e significa que a obra tem um sentido, que há quem a leia de alguma forma. Sempre pensei que em grandes projetos coletivos não é necessária tanta grandiloquência, não é necessário que Fidel Castro esteja ali, na frente de uma varanda, a falar para milhares de pessoas.

Hoje em dia, essa estratégia já não é tão necessária e eficaz. Talvez nunca tenha sido. Se uma única pessoa entender a minha mensagem como algo novo, como algo diferente do que ouviu e do que acredita sobre Cuba e os seus estereótipos culturais, históricos e políticos, já é um ganho.

Destaca alguma galeria que tenha marcado a diferença pela receção que deu ao seu trabalho?

Há um espaço que sempre refiro chamado "Espacio Aglutinador" em Havana, que é dirigido por uma artista chamada Sandra Ceballos, e sempre mostrou essa outra visão da arte cubana. Também em Berlim, onde estive a viver, destaco a Künstlerhaus Bethanien (onde expus as minhas obras pouco antes de ser preso). E agora vou fazer parte de uma exposição coletiva no Reina Sofía, em Madrid.

Em relação à perceção do seu trabalho, quais são as diferenças que deteta entre o público europeu e o público cubano?

Na Europa, vejo que há um interesse pautado pela proximidade. Mas temos de ter em conta que em Cuba ninguém se pode sentar numa galeria e pedir: “Olha, fala comigo sobre isto”. Acho que é evidente que o público para o qual meu trabalho é feito, que é principalmente o cubano, carece dessa conexão devido ao terror político que se vive lá. As pessoas não te dizem nada e se o fazem é em privado.

Mas se refletir sobre o assunto, concluo que o meu trabalho é destinado ao público em geral. Acho que aqui, na Europa, sente-se mais liberdade porque não há medo, as pessoas podem fazer perguntas abertamente sobre as obras e também há a capacidade de trabalhar com menos tensão porque não há autocensura.

"Este sempre foi o meu vínculo natural: fazer trabalhos em Cuba e expor fora do país"

Creio que, no final, não há diferença entre os dois públicos no que diz respeito à conexão que crio e quero estabelecer. Mas é percetível na resposta do público. E aprecio a receção que o meu trabalho pode ter na Europa ou nos EUA. Na verdade, esse sempre foi meu vínculo natural: fazer trabalhos em Cuba e expor no exterior.

Como é que acha que a situação em Cuba é entendida aqui?

Em todos os lugares, o que vejo é que as pessoas não entendem nada e não sabem nada. A imprensa não tem ajudado muito e há muitos estereótipos. Cuba é um país que realmente não existe. A Cuba que vejo aqui na Europa não é a que realmente existe, é preciso ir lá e entender a realidade. Acho que há uma perceção muito má do que é a realidade cubana.

Às vezes, as pessoas não querem pensar porque pensar é difícil, é cansativo. É a mesma perceção que os cubanos poderiam ter sobre a Espanha, certo? Uma perceção errada. Há muito mais para descobrir em Cuba, e é isso que tento transmitir, a complexidade de um fenómeno como esse.

E como é que acha que o seu trabalho influencia a perceção sobre Cuba?

O meu trabalho tenta quebrar esses estereótipos. Naturalmente, as pessoas pensam que num país há uma história oficial, mas em Cuba há muitas outras histórias e muitas formas de entender esse espaço geográfico, geopolítico e cultural. Procuro introduzir uma nova nuance dessa realidade que é bastante ampla.

“Cuba não merece ser um espaço totalitário, nem ter um comunismo de Estado que nada tem a ver com nossa identidade”.

É a minha modesta teoria, como há tantas outras. Mas também tento mostrar minhas próprias convicções de que Cuba não merece ser um espaço totalitário, nem ter um comunismo de Estado que nada tem a ver com nossa identidade. Isto é uma coisa muito estranha e eu tento falar sobre isso mostrando também factos históricos.

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