O líder do atelier Contacto Atlântico acredita no impacto das cidades na vida das pessoas e exige a defesa rigorosa do património.
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"Construir uma igreja, seja qual for a religião." O arquiteto André Caiado quer apenas conseguir fazer aquilo que lhe mudou a vida, perceber que há espaços que podem aproximar o homem do seu Deus. É essa responsabilidade e o poder da arquitetura "pode ser um caminho para a felicidade".

Licenciado em Arquitetura pela Universidade Técnica de Lisboa em 1990, prosseguiu a sua formação em Madrid, onde obteve um Mestrado em Informática para Arquitetura, Urbanismo e Gestão Imobiliária e um Doutoramento em Tecnologias de Edifícios Inteligentes. Em 1996, fundou a Contacto Atlântico, no Estoril, atelier que se tornou uma referência na arquitetura e reabilitação urbana.

André Caiado poderá ainda não ter projetado uma igreja, mas a sua carreira é composta por muitos espaços que também mudaram (e mudam) a vida das pessoas, sempre num profundo respeito pelo património, pela história e pelo ambiente. Afinal, como concluiu o arquiteto: "Estamos apenas de passagem".

No seu mais recente trabalho estão lugares tão emblemáticos como o edifício do Diário de Notícias ou o histórico edifício da Praça D. Pedro IV, no Rossio, onde está agora uma das maiores Zara do mundo, ou outras lojas emblemáticas na Avenida da Liberdade. Uma Lisboa reabilitada para o maior dos luxos: "Viver no centro da cidade e chegar a qualquer lugar a pé".

Casa Caiado
Casa Caiado, Cascais

Qual é a primeira memória de que a arquitetura poderia ser o seu caminho? 

Foi através das oportunidades que tive para conhecer o mundo. Eu tive a oportunidade de viajar desde criança e comecei a interessar-me pela arte, pelos
museus, pelos edifícios, pelo que é que havia disponível nas cidades e como as cidades tinham um impacto brutal na vida dos humanos, esse interesse levou-me naturalmente à arquitetura.

Fiz a licenciatura em Lisboa, trabalhei em dois gabinetes de arquitetura e, depois, concorri a uma bolsa de mestrado, que felizmente consegui. Isso levou-me para Madrid, onde fiz o mestrado, e mais tarde continuei para um doutoramento.

Falava há pouco sobre o património. Considera que a preservação do património deve ser uma prioridade?

Sem dúvida. O património é algo que não pode ser recriado. Quando um edifício histórico é destruído, é uma perda irreversível. Por isso, qualquer intervenção deve ser feita com extremo cuidado. Algo que posso replicar muitas vezes não tem o mesmo valor de algo único e insubstituível.

O património é algo que não pode ser recriado

E, portanto, o património necessita um nível de proteção muito elevado e uma perceção de toda a sociedade do valor que ele tem. Afinal, nós estamos apenas de passagem neste mundo. Com sorte, vivemos um século, e devemos cuidar do que deixamos para as próximas gerações.

A Avenida da Liberdade é um local emblemático. O que sente quando trabalha esta zona da cidade?

Os centros das cidades são locais únicos. Eu tinha percebido o interesse comercial que eles podem ter e a satisfação que trazem os humanos passear por uma avenida no centro da cidade onde o comércio existe. E esse centro da cidade normalmente está recheado de pequenas jóias, que são os edifícios.

Ao longo dos anos, tive a oportunidade de intervir em vários edifícios na Avenida da Liberdade, na Baixa e no Chiado. São experiências únicas, pois, se perdermos um desses edifícios históricos, não conseguimos recriá-lo da mesma forma.

A estratégia de preservação atual baseia-se em intervenções reversíveis. Ou seja, tudo o que for feito pode ser revertido para que o edifício regresse à sua forma original. Muitos dos nossos projetos acabam por aproximar os edifícios do seu estado inicial, corrigindo alterações feitas ao longo do tempo.

Um exemplo recente é o quarteirão da Suíça, entre a Praça da Figueira e a Praça do Rossio. O edifício foi restaurado de forma a ficar muito próximo da sua versão original. Tivemos a sorte de contar com desenhos históricos do Pombalino, o que nos permitiu devolver ao edifício a sua essência.

Louis Vuitton
Louis Vuitton, Avenida da Liberdade

Lisboa tem passado por uma transformação significativa. Como vê essa evolução?

As cidades são entidades vivas, e para que a cidade possa manter-se viva, ou possa regenerar-se, quase ressuscitar, é preciso que se permita intervenção.
Mas essa intervenção tem que ser cuidadosa e controlada.

A cidade de Lisboa é um muito bom exemplo, é quase um exemplo de estudo, porque a Baixa de Lisboa, a certa altura, não existia. Era um lugar perigoso, onde ninguém vivia e não havia comércio, E depois, paulatinamente, o património cultural começou a permitir reabilitar edifícios para funções economicamente viáveis, nomeadamente habitação, hotéis e comércio e a cidade começou a ganhar vida outra vez. Agora já temos uma situação engraçada em que quase todos nós gostaríamos de viver no centro da cidade e nós mudámos do centro da cidade para a periferia a certa altura porque o centro não era visível.

As cidades são entidades vivas, e para que a cidade possa manter-se viva, ou possa regenerar-se, quase ressuscitar, é preciso que se permita intervenção.

Viver no centro da cidade é um conceito de luxo?

Absolutamente, passa a ser. Porque a cidade ideal é a cidade que tem tudo, onde eu, em 15 minutos, a pé, chego a todo lado.

Se eu viver na baixa da cidade de Lisboa, em 15 minutos chego ao teatro Dona Maria. Eu, em 15 minutos, chego a um museu. Eu, em 15 minutos, estou no mercado. Eu, em 15 minutos, estou à beira rio a passear ou a andar de bicicleta. Essa cidade, onde eu posso deslocar-me a pé, que tem todas as realidades disponíveis, está no centro.

Mas quando pensamos em luxo, ainda pensamos numa casa gigante na periferia.

O luxo é poder viver a cidade, não é só uma questão de "ter". O luxo é eu poder sair da minha casa, passear pela cidade e ir tomar um cafezinho, sentar-me a ler um livro, ou ouvir música, próximo de onde eu habito, e cada dia poder fazer
uma coisa diferente dentro da cidade.

O luxo é poder viver a cidade, não é só uma questão de "ter".

Os homens preferem cidades, e a cidade densa. Os humanos gostam de viver ao pé de outros humanos.

Rossio
Edifício Rossio

A profissão de arquiteto é muito diversificada. O que a torna especial para si?

O mais fascinante na arquitetura é que cada projeto é diferente. O local, as regras aplicáveis, os clientes e até as entidades envolvidas no licenciamento variam, tornando a profissão dinâmica e desafiadora.

Por outra parte, é uma profissão da qual eu me orgulho muito, porque cada vez que nós acabamos de intervir num edifício, nós reduzimos brutalmente a pegada de carbono. As pessoas não se apercebem, mas a profissão da construção é a profissão que mais vai fazendo pela redução do consumo de energia no nosso planeta. 

Os edifícios consomem cerca de 35% da energia do planeta. Atualmente, conseguimos criar edifícios que consomem praticamente zero energia ao longo do ano. Cada reabilitação que fazemos reduz significativamente a pegada de carbono e melhora a qualidade de vida dos ocupantes.

A sustentabilidade deve ser uma prioridade na arquitetura?

Considero que é uma obrigação. Há 20 anos, os painéis solares eram vistos como um extra para quem queria mostrar inovação. Hoje, não incluir painéis solares numa casa é um mau serviço ao cliente.

Os painéis solares pagam-se em seis anos e têm um ciclo de vida útil de pelo menos 20 anos. São um dos melhores investimentos que uma família pode fazer. 

Se eu tiver uma casa bem construída, que é termicamente eficiente, de perto de si, e depois tiver em cima da casa os painéis solares que produzem energia elétrica, grátis, que eu posso transformar em calor através de uma bomba de calor, por exemplo, um sistema de aquecimento, se eu não tiver custos, eu vou manter a casa quente no inverno. E eu sou velhote e vou viver mais anos, mesmo sem me aperceber. Portanto, isto é um serviço à qualidade de vida.

O licenciamento continua a ser um entrave para a construção em Portugal. Como vê esta questão?

Sem dúvida que a minha posição tem sido sempre, eu quero responsabilidade e um sistema de controle eficaz. Isto é, primeiro eu dou responsabilidade aos técnicos e eu revejo em todos os meus colegas e em todos os engenheiros com que eu trabalho essa capacidade, total responsabilidade, e depois quando a coisa correr mal, é as responsabilidades em tribunal.

A única área onde eu considero que é realmente necessária a intervenção de terceiros tem a ver com o património. Eu não sei tanto sobre património como as pessoas que dedicaram a sua vida a trabalhar para o património cultural, para a administração da república de um património cultural. Portanto, eu preciso do conselho deles.

A única área onde eu considero que é realmente necessária a intervenção de terceiros tem a ver com o património. 

Eu, com as minhas melhores intenções, não produzo um projeto tão bom, em termos patrimoniais, como se eu for a uma reunião e tiver aqui à frente um colega, um historiador, um arqueólogo, um engenheiro, que me vai falar sobre como é que a coisa deve ser feita. Nessa área, eu tiro o chapéu e, de facto, acho que devemos ter este nível de controlo.

Mas, para a construção nova e reabilitação que não envolve património, não há necessidade de processos tão demorados.

Temos engenheiros e arquitetos extremamente competentes em Portugal. As nossas faculdades formam profissionais de altíssimo nível, que muitas vezes são mais reconhecidos lá fora do que cá. Há poucos países, com 10 milhões de pessoas que tenham dois prémios Pritzker, que é o "Nobel da Arquitetura", vamos chamar assim, vivos. Portanto, os arquitetos portugueses são muitíssimo bons na generalidade.

Diário de Notícias
Diário de Notícias, Avenida da Liberdade

Algum projeto que tenha sido particularmente marcante para si?

O edifício do Diário de Notícias foi um projeto muito especial. Conseguimos preservar completamente a fachada original e transformar o espaço, que antes tinha um caráter semi-industrial e de escritórios, num edifício habitacional.

Outro projeto que me marcou foi um edifício pequeno na Madragoa, onde fui chamado para intervir num projeto chumbado. O objetivo era dotar quatro famílias idosas de casas de banho e cozinhas dignas. Tínhamos apenas onze dias para aprovar o projeto e, felizmente, encontrei na Câmara uma arquiteta dedicada, que conseguiu agilizar o processo. O edifício foi reabilitado e, mais tarde, sem que eu soubesse, o proprietário concorreu ao programa Recria e recebeu um prémio.

Há algum projeto que ainda gostaria de concretizar?

Sim, gostaria de projetar uma igreja ou um templo, independentemente da religião. Os maiores impactos que eu tive que me levaram a ser arquiteto, como perguntou ao princípio, foi que, em alguns edifícios onde a pessoa entra e encontra-se, abre o coração. 

Gostaria de projetar uma igreja ou um templo, independentemente da religião.

Eu encontrei santidade, e eu não sou uma pessoa muito religiosa, atenção, na Igreja dos Salesianos no Brasil, na capital, em Brasília. Encontrei a mesma coisa na Catedral de Notre-Dame de Chartres. São edifícios completamente diferentes. A Igreja Salesiana em Brasília é uma igreja modernista, digamos assim, é um cubo de vidro, tentando simplificar muito. Isso teve um impacto muito grande em mim, a perceção que a arquitetura pode trazer a felicidade.

Isso dá aos arquitetos uma grande responsabilidade.

Digo sempre aos meus alunos que maior ditador foi o arquiteto que fez a casa
onde eu vivo. Porque é a pessoa que ditou o caminho que eu faço todas as madrugadas, entre a minha cama e o duche. Tenho de me levantar, andar para ali, passar um corredor, entrar numa casa de banho, terminar no duche. Não tenho hipótese, há paredes pelo caminho, o caminho é aquele. O caminho foi ditado pelo arquiteto. Eu não tenho hipótese, tenho que viver com esse caminho.

A arquitetura pode ser um caminho para a felicidade.

Os arquitetos podem criar uma cidade simpática, amável para os humanos, ou uma cidade dura e desagradável para os humanos. É o poder da arquitetura. A arquitetura pode ser um caminho para a felicidade.

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