Jorge Nandin de Carvalho, presidente da Associação Portuguesa de Projetistas e Consultores (APPC), em entrevista ao idealista/news.
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Jorge Nandin
Jorge Nandin, presidente da APPC

Seria necessário construir cerca de 60.000 casas por ano para resolver o problema da habitação em Portugal, segundo Jorge Nandin de Carvalho, presidente da Associação Portuguesa de Projetistas e Consultores (APPC). Para este responsável, a crise habitacional tem as suas raízes num “desalinhamento dos rendimentos dos portugueses face aos atuais custos dos terrenos e aos custos de construção”, sendo necessário, por isso, combatê-la em várias frentes. A carga fiscal é uma delas – mas não é a única –, tal como explica em entrevista ao idealista/news.

Para aumentar a oferta de casas, Jorge Nandin de Carvalho considera fundamental, por exemplo, “disponibilizar terrenos a custos controlados e novas zonas de expansão das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, forçando, assim, a redução do custo dos terrenos”.

Considera, além disso, que a formação dos projetistas em novas formas mais industrializadas de construção “também pode ter um impacto positivo, permitindo que se executem obras mais rápidas e se reduza o peso excessivo da dependência de mão de obra para construção”.

Não tem dúvidas que a “instabilidade e insegurança provocadas pelas sucessivas alterações da lei do arrendamento não transmitem qualquer segurança a quem quer investir para arrendar”, e concorda com o aumento do “financiamento às famílias para compra de casa própria”, já que a “maioria dos portugueses mal consegue esticar o ordenado até ao final do mês” e ter “capacidade de criar este aforro para dar de entrada”.

Na entrevista que agora reproduzimos na íntegra, o presidente da APPC faz (também) um balanço das novas regras impostas pelo Simplex urbanístico, avaliando o problema estrutural da falta de casas e estratégia de habitação do novo Governo. 

casas em Aveiro
Foto de Margarida Afonso no Unsplash

O Simplex urbanístico já está a ter efeitos práticos no terreno? Em que medida?

É difícil medir, em tão pouco tempo - ainda nem seis meses decorreram desde a entrada em vigor do Simplex - se os efeitos práticos são positivos, como esperamos.

Sempre que há uma disrupção - e o Simplex, para o bem e para o mal, veio alterar todas as regras -, o mercado demora a assimilá-la e os investidores podem assustar-se, tantas são as opiniões contrárias - e muitas politizadas - sobre o nova Lei, publicadas nas redes sociais, por exemplo. 

"É reconhecido por todos o enorme calvário que implica licenciar um projeto, um edifício ou uma construção"

Seria importante que este passo significativo para a desburocratização fosse apoiado, mesmo que exista um óbvio espaço para melhorias, sem desvirtuar o objetivo principal do plano, que é o de simplificar e encurtar os prazos dos processos de licenciamento.

É reconhecido por todos o enorme calvário que implica licenciar um projeto, um edifício ou uma construção. Seria, portanto, um retrocesso rejeitar esta evolução, ainda que seja necessário aperfeiçoar algumas medidas, em questões entretanto identificadas por diversos agentes, designadamente no que toca a prazos e à possibilidade de intervenção tardia da fiscalização.   

Como é que os projetistas estão a lidar com as novas regras e responsabilidades colocadas pelo Simplex?

A APPC integra empresas projetistas das áreas da engenharia e da arquitetura. Relativamente à engenharia, os efeitos do Simplex são reduzidos, dado que há muito que os projetos de licenciamento das especialidades de engenharia não estão sujeitos a efetiva aprovação, bastando o termo de responsabilidade dos autores.

Ao contrário dos projetos de estabilidade, afetos a regras muito específicas e que só em casos excecionais carecem de revisão independente - ficando por isso a responsabilidade de erros de projeto sobre os ombros dos projetistas -,  os projetos das redes de águas e esgotos, eletricidade e mecânica eram quase sempre verificados genericamente pelos concessionários fornecedores das utilidades, através de análise da documentação ou com recurso à efetiva operacionalidade das redes, e por isso, de certo modo, os seus projetos acabavam por ser confirmados.

projetistas
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Com as empresas de projeto de arquitetura, que com o novo Simplex passam a responsabilizar-se pelo que projetam, caindo a aprovação do projeto pela autarquia, a situação aproxima-se da adotada pelos autores do projeto de estabilidade, mas é ainda mais complexa. Na verdade, se na engenharia as especificações são claras e estão inequivocamente legisladas, os decretos-lei, normas e regulamentos aplicáveis à arquitetura são inúmeros, por vezes contraditórios, alguns em vigor há mais de 50 anos, pouco claros e sujeitos a várias interpretações, além de contemplarem normas de âmbitos nacional, regional e local. Torna-se assim mais difícil para um arquiteto cumprir com todas as regras - as certas e erradas, as antigas e as modernas - que para um engenheiro respeitar uma norma da engenharia. 

Assim, enquanto este Simplex não for melhorado ou não for publicado o Código da Construção - tanto quanto sabemos, está praticamente parado -, tal provoca nos arquitetos uma reação de excesso de cautela, de modo a evitarem fiscalizações posteriores das autarquias, que obriguem a alterações de projeto com consequências nefastas para o promotor, em termos de custos e de prazos, isto é, no que concerne ao investimento. Tanto excesso de cautela pode retirar algum espaço à inovação.

"Enquanto o Simplex não for melhorado ou não for publicado o Código da Construção - tanto quanto sabemos, está praticamente parado -, tal provoca nos arquitetos uma reação de excesso de cautela"

Uma última observação: o projeto de estabilidade, que garante a resistência de um edifício a várias ações, entre elas as sísmicas, não é objeto de qualquer análise. Talvez seja altura de criar um sistema de revisão casuística destes projetos, que assegurem a confirmação do cumprimento das normas. Parece que tudo acaba por ser fiscalizado e verificado, nem que seja pela prática funcional, mas não queremos que os projetos de estabilidade em relação aos sismos se verifiquem pela prática, porque neste caso a correção pode já vir tarde.    

No início de 2024 registou-se uma descida das novas licenças de construção. O que pode explicar esta tendência?

Não temos acesso a essas estatísticas, mas, como já referido, existe um tempo de adaptação às disrupções. Se forem sendo feitas alterações pontuais no novo regime, no sentido de melhoria e clarificações, estamos certos de que a atividade retomará rapidamente e com mais força.

O problema estrutural da falta de casas resolve-se como?

O problema está relacionado com o desalinhamento dos rendimentos dos portugueses face aos atuais custos dos terrenos e aos custos de construção, tendo o capital dos promotores sido desviado para projetos turísticos e segmentos residenciais prime, essencialmente para estrangeiros.

Esta realidade terá de ser combatida em várias frentes. Nomeadamente: disponibilizando terrenos a custos controlados e novas zonas de expansão das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, forçando, assim, a redução do custo dos terrenos.

Por exemplo, a deslocação do novo aeroporto para Alcochete é uma oportunidade para se criar um plano de expansão da área metropolitana de Lisboa para leste, oferecendo um maior 'stock' de terrenos para habitação.

comprar casa
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Estando o atual custo de construção acima das possibilidades da maioria dos portugueses, devem ser implementadas medidas para construção de casas mais baratas, quer pela redução das áreas de construção dos apartamentos, quer pelo aumento dos índices de construção dos terrenos, o que implica alterar regulamentos. A formação dos projetistas em novas formas mais industrializadas de construção também pode ter um impacto positivo, permitindo que se executem obras mais rápidas e se reduza o peso excessivo da dependência de mão de obra para construção. Também a carga fiscal não pode continuar a ter tanto peso na habitação.

"A formação dos projetistas em novas formas mais industrializadas de construção também pode ter um impacto positivo"

Por outro lado, a instabilidade e insegurança provocadas pelas sucessivas alterações da lei do arrendamento não transmitem qualquer segurança a quem quer investir para arrendar. Aumentando a segurança neste setor, surgirá certamente capital de investimento, tendo como consequência a quebra dos custos do arrendamento. Realçamos que o mercado de arrendamento é um instrumento essencial para o incremento da mobilidade profissional e consequentemente aumento de produtividade do país.

Por último, é preciso aumentar o financiamento às famílias para compra de casa própria. Desde a crise financeira de 2008 que a banca se viu obrigada a exigir capital de entrada para a compra de casa própria (+/-20%). Se a maioria dos portugueses mal consegue esticar o ordenado até ao final do mês, jamais terá capacidade de criar este aforro para dar de entrada na compra de habitação própria. 

Como veem a estratégia de habitação apresentada pelo novo Governo?

Representa uma melhoria da proposta apresentada pelo Governo anterior e revoga alguns aspetos menos positivos. Não querendo avançar muito na área política, parece-nos que o regime de Estado Providência tão caro no século passado (e característico de um pós-guerra), que desenhou um quadro de bem-estar geral, chegou ao seu limite, devendo ser reequilibrado com uma economia mais dinâmica, a par com a iniciativa privada.

Segundo dados apresentados pelo Governo, o investimento em habitação nos últimos anos ficou claramente para trás, sendo urgente recuperar o tempo perdido. É sabido que quando os problemas se acumulam, também o tempo necessário para os resolver aumenta exponencialmente.

construir casas
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O Governo aponta várias medidas para enfrentar este problema, desde a reclassificação do uso de solo aos incentivos à construção- em geral e por cooperativas de habitação -, recuperação do PRR para esta área, apoio a residências de função ou incentivos aos jovens para aquisição de casa. São genericamente medidas positivas, mas parece-nos necessário construir, pelo menos, cerca de 60.000 habitações familiares por ano para resolver efetivamente esta questão. Para que tal aconteça julgamos fundamental um entendimento entre partidos do dito “arco da governação”, responsáveis pela definição de políticas de médio/longo prazo. A habitação não se resolve com alterações a cada legislatura.

Finalmente, ao nível urbano, é preciso adotar planos de mobilidade que contemplem soluções para a saúde, ensino, academia, polos empresariais e serviços múltiplos, assim como assegurar a habitação. Pensar, projetar e construir demora tempo; falamos de décadas de trabalho.

Antecipam novas mexidas na lei com o novo Executivo? O que consideram urgente mudar?

Há quem preconize uma alteração no Decreto-lei 10/2024 para permitir a opção de retorno ao regime de licenciamento antigo, dando a possibilidade ao promotor de colocar o projeto de arquitetura para aprovação do município, como anteriormente, ou enveredar pelo regime de comunicação prévia, como aponta o Simplex. Esta alternativa pode ser mais viável para promotores e projetistas tendencialmente inovadores ou menos convictos da viabilidade do projeto, pois garante-lhes uma resposta definitiva. É uma das propostas efetuada pela Comissão Técnica para a Simplificação e Uniformização de Procedimentos Urbanísticos de que a APPC faz parte com mais nove entidades.

Outras alterações se afiguram necessárias, como seja a do estabelecimento da obrigatoriedade de as câmaras municipais procederem à fiscalização sucessiva da Comunicação Prévia, num prazo não superior a 120 dias, findo o qual não poderão inviabilizar a execução das operações urbanísticas objeto da Comunicação Prévia nem promover quaisquer medidas de reposição da legalidade urbanística. Esta medida destina-se a dar maior segurança ao promotor e a garantir que eventuais incumprimentos regulamentares sejam corrigidos na fase inicial de execução da obra. Finalmente, seria importante repor o alvará de construção e licença de utilização (com relevância para esta última) e o estabelecimento de um prazo máximo de 120 dias para a fiscalização sucessiva pelas autarquias da autorização de utilização.

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