Fernando de Almeida Santos foi eleito bastonário da Ordem dos Engenheiros (OE) em 2022, terminando o mandato em 2025. Antes, entre 2016 e 2022, foi vice-presidente nacional, tendo o percurso na OE começado no longínquo ano de 1997, como delegado-adjunto de Braga. Recebe-nos na biblioteca da sede nacional da OE, em Lisboa, para uma longa conversa. “Sentimos que estamos a trabalhar não só para os nossos membros como para a engenharia em geral e para a sociedade no seu todo. Temos sentido de missão”, diz, mostrando-se otimista quanto ao futuro da profissão. “Estamos no bom caminho e Portugal está bem servido naquilo que tem a ver com a profissão de engenheiro”. Entre os temas abordados na entrevista estão a falta de mão de obra na construção e a crise da habitação, um problema que o país não está a conseguir resolver, assegura.
A entrevista concedida ao idealista/news acontece dias antes da OE receber na sua sede os líderes mundiais do setor para um debate que teve como tema central as “Soluções de Engenharia para um Mundo Sustentável”, no âmbito da celebração do Dia Mundial da Engenharia 2024. Fernando de Almeida Santos, engenheiro civil sénior e especialista em segurança no trabalho da construção, puxa dos galões para enaltecer a qualidade da engenharia nacional, isto apesar de haver “falta de engenheiros em Portugal”. “Precisamos de vincular talento, não deixar fugir o que temos e se calhar até ir buscar onde tivermos de ir, porque nós precisamos de todos. A nossa engenharia é boa, conseguimos alavancar processos, mas depois precisamos de quantidade para substanciá-los”, explica.
Sobre a necessidade de aumentar a oferta de casas no mercado de forma a dar reposta à crise na habitação, passa a bola ao Governo, considerando que “não pode estar sentado à espera que apareçam investidores para obras a custos acessíveis quando um terreno que tem se calhar consegue vendê-lo ao quádruplo do preço”. “Temos de perceber que a iniciativa tem de ser imediatamente de oferta direta do Estado num primeiro momento, porque é essa oferta do Estado, em quantidade, que vai fazer com que depois se alivie a pressão de preços dos outros investimentos, e baixe o metro quadrado depois de venda”, sustenta.
Estes são alguns dos temas abordados na entrevista, realizada dias antes de Portugal ter ido a votos, tendo a Aliança Democrática (AD) ganho ao PS as eleições legislativas pela margem mínima: elegeu 79 deputados e teve 29,49% dos votos e o PS elegeu 77 deputados e teve 28,66% dos votos. O responsável fala ainda, por exemplo, do novo simplex dos licenciamentos e do novo estatuto da OE.

Que balanço faz da atividade enquanto bastonário da Ordem dos Engenheiros?
Sentimos que estamos a trabalhar não só para os nossos membros como para a engenharia em geral e para a sociedade no seu todo. Temos sentido de missão. É um esforço gratificante que estamos a fazer. Estamos a querer fazer com todos os membros eleitos e em equipa um trabalho de excelência para Portugal. E sentimos que estamos no bom caminho. Se há críticas a fazer façam-nas de forma construtiva, para que possamos melhorar o nosso desempenho. Sentimos que estamos a fazer bem as coisas, mas é uma autoavaliação e a avaliação tem de ser de terceiros. Mas em termos de resultados sentimos que estamos a chegar lá e, portanto, esta é a mensagem que deixo, principalmente para os membros da OE, mas também para quem usufrui daquilo que são os serviços dos engenheiros no geral. Confiem em nós, porque estamos no bom caminho, e Portugal está bem servido naquilo que tem a ver com a profissão de engenheiro.
Qual é o estado da nação da engenharia em Portugal?
Nas questões mais transversais, que são de discussão infraestrutural de Portugal, temos sido absolutamente críticos quanto ao facto de Portugal demorar muito a decidir, e é um contributo à sociedade, seja de que maneira for, e mesmo quando decide demorar muito a executar. Nós queremos um verdadeiro aeroporto, queremos que a ferrovia avance, queremos que a habitação avance. Sabemos de todas essas carências. Sabemos que há falta de engenheiros em Portugal, é outro debate que temos. Precisamos de vincular talento, não deixar fugir o que temos e se calhar até ir buscar onde tivermos de ir, porque nós precisamos de todos. A nossa engenharia é boa, conseguimos alavancar processos, mas depois precisamos de quantidade para substanciá-los.
"Sabemos que há falta de engenheiros em Portugal (...). Precisamos de vincular talento, não deixar fugir o que temos e se calhar até ir buscar onde tivermos de ir, porque precisamos de todos. A nossa engenharia é boa, conseguimos alavancar processos, mas precisamos de quantidade para substanciá-los"
“A nossa engenharia é boa”, diz. O problema é a falta de mão de obra na construção, nomeadamente no segmento da habitação?
A questão da falta de capacidade de execução, mormente na habitação, mas existem outros exemplos, nos municípios há também orçamento disponível, mas depois não há mão de obra qualificada suficiente, tem muito a ver com algumas dimensões e não só de diáspora ou de falta de procura para a engenharia civil. É uma mistura de muitas circunstâncias. A primeira é que desde há pelo menos 20 anos há uma falta de harmonia, de planeamento continuado nos nossos investimentos em infraestruturas. Ou seja, temos ciclos, o que faz com que isso rebente com empresas de construção, porque não têm planos continuados, havendo um desinteresse pela profissão, e faz com que haja uma diáspora de pessoas para sobreviverem. Isso aconteceu na década de 2010 em grande escala e ainda estamos a levar com essa irresponsabilidade de falta de planeamento portuguesa, que é crónica e faz com que Portugal se torne um país desequilibrado nestas matérias. Depois, face a isso, existe um continuado descapitalizar de capacidade técnica instalada nos órgãos do Estado, sejam nacionais, sejam municipais. Há um esvaziamento. No caso mais recente, o privado tem mais músculo que o público por políticas públicas que tardam em ser resolvidas e, portanto, há uma debandada do público para o privado, principalmente nas áreas tradicionais de engenharia e na engenharia civil em particular.
No caso particular da habitação, a nível nacional deixou-se em 20 anos fugir tudo aquilo que era o ‘know how’ e a capacidade do Estado, também por esvaziamento técnico não substituído, de pessoas que saíram da profissão por idade, é normal, e que sabiam muito disso. E agora é preciso retomar.
As políticas da habitação, de uma maneira geral, aquelas que têm a ver com a oferta direta do Estado ou as que têm a ver com os protocolos com os municípios, são boas, mas depois não há dentro do Estado quem dinamize. E aqui o problema já não é de decisão política é de execução técnica dentro do esforço político. Tardamos muito. Temos 26.000 fogos para fazer em três anos, que é manifestamente pouco para as necessidades de Portugal, mas é aquilo que está apoiado pelo PRR, com 3,2 mil milhões de euros, que já teve um reforço de 500 milhões de euros. Mas a verdade é que tardamos em ver no terreno a grande necessidade de habitação em Portugal. As razões são claras, tem a ver com aquilo que já disse, mas ao mesmo tempo, dentro desse bolo todo, nem sequer sabemos qual é a oferta direta do Estado e dos municípios.
"As políticas da habitação, de uma maneira geral, aquelas que têm a ver com a oferta direta do Estado ou as que têm a ver com os protocolos com os municípios, são boas, mas depois não há dentro do Estado quem dinamize. E aqui o problema já não é de decisão política é de execução técnica dentro do esforço político (...). Tardamos em ver no terreno a grande necessidade de habitação em Portugal"
Sou daqueles que prefere que as empresas portuguesas se dotem de capacidade estrangeira, se não tivermos gente suficiente em Portugal para complementar equipas, do que cedamos a nossa riqueza a empresas estrangeiras. Penso assim, e isto não tem a ver com xenofobia, tem a ver com salvaguarda do interesse nacional, com capacitação da nossa economia na criação de riqueza, para que depois possa ter músculo para, em vez de importarmos empresas, sermos nós a exportarmos as nossas empresas para outras esferas. Temos essa capacidade, temos essa dimensão e temos essa riqueza intelectual.

Como é possível resolver este problema da escassez de mão de obra e da falta de capacidade produtiva na construção?
Se uns países conseguem resolver o seu problema, nomeadamente Alemanha, Holanda, ou Reino Unido, agora menos, que com a saída da União Europeia (UE) tem alguma inflexibilidade naquilo que é a imigração, mas os EUA, por exemplo, se conseguem resolver os seus problemas de quantidade, não estou a falar de qualidade, porque qualidade nós temos cá, nós também temos de ser capazes de o fazer. Nós apesar de tudo no PRR, e apesar de estarmos relativamente atrasados, comparativamente com todos os países da UE somos dos mais adiantados. A ideia é, se nos pusermos dentro de um planeamento que tem de ser pensado, estruturado, horizontalizado no tempo, se não tivemos nada nos anos de 2013 a 2017 e agora temos, e de repente tivermos ultra picos, há qualquer coisa que não está bem.
Parece-me bem que a empresa Infraestruturas de Portugal, por exemplo, faça faseadamente a linha de alta velocidade Porto-Lisboa com três timings diferentes, porque se fizer tudo ao mesmo tempo a capacidade instalada é de pico e depois vamos ter um vazio. Temos um aeroporto, que não sei quando é que vai começar, mas sabemos que se for faseado vai demorar entre seis e dez anos e não me choca nada que se faça uma primeira fase em cinco, seis anos e depois se complemente com mais cinco, seis anos, porque temos tempo de o fazer, porque já resolvemos o problema imediato do país na primeira fase do problema. Além disso, depois teremos uma cidade aeroportuária que pode permitir, inclusivamente, resolver alguns problemas da habitação.
"(...) Temos boa engenharia, [e] em vez de a deixar sair se a soubermos manter… Mas aqui precisamos claramente de um choque salarial. Ainda hoje estamos a emergir daquilo que foi uma década catastrófica do ponto de vista salarial para os engenheiros portugueses, e para os arquitetos também"
O que temos de ser é equilibrados. Temos gente para tudo, mas vamos ter de ter picos de emigração. O que temos de ter cuidado é na imigração que queremos. Sem sermos xenófobos e muito menos racistas, obviamente, mas há que ter um equilíbrio nisto. Ou seja, a imigração deve ser eminentemente qualificada, mas obviamente que na construção, quando falta mão de obra em cerca de 80.000 operários, em condições normais, temos de ter uma abertura do país para não qualificados poderem fazer aquilo que o país necessita. Agora, temos boa engenharia, [e] em vez de a deixar sair se a soubermos manter… Mas aqui precisamos claramente de um choque salarial. Ainda hoje estamos a emergir daquilo que foi uma década catastrófica do ponto de vista salarial para os engenheiros portugueses, e para os arquitetos também.
Resumindo, sentimos que a engenharia portuguesa é de excelência por várias razões. Primeiro, exportamos com facilidade, os nossos miúdos mais novos vão lá para fora e ficam, por qualidade. Nós queremos é que eles voltem, mas é difícil. Segundo, temos de ter um choque salarial, claramente. E terceiro, do ponto de vista orgânico da engenharia, apesar de Portugal ser o mais pequeno país dos quatro do sul da Europa mediterrânica, ou seja, entre Portugal, Espanha, França e Itália, é o que tem mais projeção internacional na engenharia, pela forma como está organizada em Portugal. Somos um país de referência na engenharia, não temos dúvidas. Não só pela localização geográfica, mas pela forma como Portugal soube compor, e bem, a organização das profissões através da sociedade civil, via ordens.
Como resolver a crise na habitação em Portugal? O que é crucial fazer?
Em Espanha, o PRR prevê 180.000 fogos em três anos de oferta direta do Estado central, não estamos a contar nem com as regiões nem com os municípios. Nós aqui dos 26.000 fogos que temos para o PRR não sabemos qual cabe ao Estado central, qual cabe aos municípios e qual cabe à iniciativa privada ou a cooperativas. Não sabemos. Não há uma estratégia para isto.
O Governo não pode estar sentado à espera que apareçam investidores para obras a custos acessíveis quando um terreno que tem se calhar consegue vendê-lo ao quádruplo do preço. Nós temos de perceber que a iniciativa tem de ser imediatamente de oferta direta do Estado num primeiro momento, porque é essa oferta do Estado, em quantidade, que vai fazer com que depois se alivie a pressão de preços dos outros investimentos, e baixe o metro quadrado depois de venda. É isso que tem de ser feito e é isso que Espanha vai fazer.
"(...) Temos 26.000 fogos previstos para financiamento ao abrigo do PRR, com reforço de verba, mas Portugal já precisa de quase 100.000 fogos para suprir as necessidades imediatas de curto prazo. Não estamos a conseguir resolver o nosso problema da habitação. (...) Neste momento, o que precisamos é de ver no terreno coisas a fazerem-se e estamos a tardar muito"
Dou um exemplo mais simplista. Na reabilitação urbana, quando se começou a reabilitar as cidades, que nos anos 70/80 precisavam de uma reabilitação urbana muito forte, começou-se por uma praça. A praça ficou toda bonita, foi investimento público. Depois as ruas periféricas à praça, depois uma outra fachada de um edifício público. E o privado começou a perceber que valia a pena ter aquilo bonito, porque era a única casa feia, e começou a investir depois do público ter dado o mote. Na habitação vai ter de ser a mesma coisa.
E depois há outra questão: é que temos 26.000 fogos previstos para financiamento ao abrigo do PRR, com reforço de verba, mas Portugal já precisa de quase 100.000 fogos para suprir as necessidades imediatas de curto prazo. Não estamos a conseguir resolver o nosso problema da habitação. E o mais incrível, o mais dantesco, chamemos-lhe assim, é que temos dinheiro, vontade, legislação, mas depois não temos execução. Há aqui qualquer coisa que está a falhar. Neste momento, o que precisamos é de ver no terreno coisas a fazerem-se e estamos a tardar muito.

Portugal tem um novo Governo, o que poderá acontecer? Alguma coisa poderá mudar?
A única coisa que digo sobre isso é que as necessidades infraestruturais de Portugal não deviam estar sujeitas a ciclos políticos.
Considera que a alta carga fiscal no imobiliário, em concreto na construção, tem contribuído para a crise no setor e que, por exemplo, IVA devia baixar, ou esse não é o grande entrave ao aumento da oferta de habitação?
Acho que [a carga fiscal] é mais um fator, mas não é o tema essencial. O tema essencial é mesmo a promoção da oferta. E se houver promoção de oferta, os outros assuntos resolvem-se. Se tivermos uma oferta global e depois uma oferta complementar dos municípios e depois uma oferta privada e depois ainda cooperativas... Se este bolo todo estiver bem feito, seja com que modelo de IVA for ou de impostos, [tenderá a haver] mais oferta. É óbvio que a dimensão fiscal é importante, mas só o é se houver casas no mercado.
"Todos os modelos de promoção [de habitação], chamemos-lhe assim, seja municipal de forma direta, seja municipal em conjunto com a iniciativa privada, seja privado com o apoio público, seja oferta direta do Estado, seja cooperativas… todas essas soluções são boas. Agora tem de existir uma centralizada, que é o incentivo global, que não está a haver, que é a oferta direta do Estado"
Falou das cooperativas, a OE e a engenharia civil no geral, o setor da construção, vê com bons olhos esta aposta/solução de forma a trazer mais casas ao mercado?
Acredito que sim e que qualquer forma é boa. Todos os modelos de promoção, chamemos-lhe assim, seja municipal de forma direta, seja municipal em conjunto com a iniciativa privada, seja privado com o apoio público, seja oferta direta do Estado, seja cooperativas… todas essas soluções são boas. Agora tem de existir uma centralizada, que é o incentivo global, que não está a haver, que é a oferta direta do Estado. Não há.
Sustentabilidade, critérios ESG, descarbonização. É difícil implementar no setor da construção estes temas?
Há uma frase interessante e que se aplica aqui: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. A sustentabilidade, o digital, as novas tecnologias, o BIM, por exemplo, tudo isso, numa primeira fase, tem de ser imposto e depois entra no normal. No caso da sustentabilidade, aquilo que conseguimos foi, para já facultativamente, mas entendo que até deva ser impositivo, novos projetos. Um deles é qualidade e novas tecnologias. Quem concorre a uma obra vai ter de fazer um projeto, pode ser uma memória descritiva, a dizer o que é que se propõe fazer em termos de novas tecnologias, construção modular, BIM, digital, etc. na construção. E é bom que isso seja impositivo, porque assim todos têm de o fazer e é comparável. Defendemos, portanto, que a sustentabilidade tem de ser impositiva, implícita, para que depois seja assumida. Esta é a nossa visão. Senão andamos a falar de sustentabilidade, mas a sustentabilidade no vazio vale zero.

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