"O cenário da arquitetura em Portugal é bom, o da profissão é que não", diz Avelino Oliveira, presidente da Ordem dos Arquitetos.
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Avelino Oliveira recebe-nos na sede nacional da Ordem dos Arquitetos (OA), em Lisboa – as instalações da OA ocupam o antigo edifício dos Banhos de São Paulo, classificado como imóvel de interesse público –, e afirma, convicto, que “é bom que a sociedade perceba que os arquitetos são aqueles que mais percebem de habitação”. Nesse mesmo dia (23 de janeiro de 2024) iria reunir-se com Marcelo Rebelo de Sousa para falar sobre os problemas que a classe atravessa, regressando depois ao Porto, onde nasceu, em 1970. Em entrevista ao idealista/news sublinha, sem rodeios, que “a situação remuneratória dos arquitetos devia envergonhar Portugal” e que a arquitetura nacional “está num dos níveis mais altos da Europa”. “Diria até do mundo”, acrescenta.

Para o novo presidente da OA, substituiu no cargo Gonçalo Byrne – as eleições realizaram-se em setembro do ano passado –, não há dúvidas: “Apesar da legislação, do monstro burocrático, continuamos a fazer boa arquitetura. (…) O cenário da arquitetura é bom, o cenário da profissão é que não. E este temos de acautelar para que uma coisa não afete a outra, para que continuemos a ter arquitetura de grande qualidade”. 

Na mesma entrevista, Avelino Oliveira, que integra os órgãos sociais da OA desde 2007, considera que a “arquitetura pode ser um ativo de Portugal” e um “promotor de uma economia exportadora e pujante”. Alerta, no entanto, que o país está “a desperdiçar essa oportunidade através dos arquitetos”.

O tema da habitação tem-no acompanhado ao longo da vida, tendo sido o tema da sua tese de doutoramento, há já cerca de 15 anos. O que mudou desde então? “É muito curioso que quando fiz a minha tese o cenário não era tão negativo. E na altura já havia autores que diziam que a habitação iria ser um dos problemas nas próximas duas décadas. E foi”, diz. Estes são alguns dos assuntos abordados na entrevista com Avelino Oliveira, na qual se abordam ainda temas polémicos como o simplex dos licenciamentos urbanísticos e a importância da descarbonização no setor da construção

Ordem dos Arquitetos critica remuneração dos arqutetos
Avelino Oliveira, presidente da Ordem dos Arquitetos Frederico Weinholtz


Foi eleito presidente da AO há cerca de três meses. Que balanço é possível fazer? 

O balanço que fazemos é manifestamente positivo. Creio que envolvemos muito mais os membros naqueles que são os assuntos prementes. Mas também tivemos a surpresa de apanhar três meses muito animados e agitados em termos daquilo que foram situações legislativas. Mudaram-nos o Estatuto, que é o nosso documento base de funcionamento. Mudou um documento fundamental em termos de legislação, conhecido como o simplex. E tivemos inúmeras atividades que acompanhámos e até debates públicos. O caso do aeroporto, do TGV, daquilo que são as políticas de habitação. Foi um mandato muito rico em debate e também, de certa maneira, em atividade da OA.

Falou na questão da revisão dos estatutos da AO, que gerou muita polémica. O Presidente da República vetou o documento que, entretanto, já foi promulgado…

O que posso dizer é que a maior parte das coisas que lá estão não têm influência positiva nem para as pessoas nem para a vida dos arquitetos. Vão-nos dar um ano de tarefas burocráticas muito intensas, com ajustamentos de regulamentos e alterações sem nenhum benefício público, com o perigo de algumas coisas que lá constam poderem depois, com um legislador ainda mais ousado, criar entropias absolutamente desnecessárias. Existe muitas vezes ainda uma ideia de que entre os arquitetos e as outras profissões há conflitos. É mentira. Neste momento, a relação que temos com as outras associações profissionais, nomeadamente a Ordem dos Engenheiros, a Associação Portuguesa de Arquitetos Paisagistas, com urbanistas, geógrafos etc. é boa, é de diálogo permanente. Sinceramente, achamos que este estatuto não foi um contributo tão bom como podia ter sido.

"[Revisão dos Estatutos da OA] a maior parte das coisas que lá estão não têm influência positiva nem para as pessoas nem para a vida dos arquitetos. Vão-nos dar um ano de tarefas burocráticas muito intensas, com ajustamentos de regulamentos e alterações sem nenhum benefício público, com o perigo de algumas coisas que lá constam poderem depois, com um legislador ainda mais ousado, criar entropias absolutamente desnecessárias"

É possível destacar, ainda assim, pontos positivos?

Tenho alguma dificuldade em citá-los. Nada de particularmente positivo consigo ver. Relativamente à definição de um valor remuneratório base dos estagiários obrigatório, isso é bom, mas falta-lhe a parte posterior, que é a regulação da carreira dos arquitetos, que não existe. O Governo não se preocupou nada com isso, só se preocupou sobre qual é a base mínima. E depois, a partir daí, temos muitos problemas.

Portugal atravessa um momento de instabilidade política e legislativa, tendo o programa Mais Habitação causado muita polémica. Que impacto teve o programa no universo da arquitetura?

O Mais habitação é particularmente importante para a sociedade. E é bom que a sociedade perceba que os arquitetos são aqueles que mais percebem de habitação, porque são aqueles que desenham e estão ligados ao processo de habitação todo, desde a sua conceção até à sua concretização e adaptação da vivência das pessoas. A pena maior que temos é que não tenha havido um envolvimento ainda mais profundo da parte da arquitetura e dos arquitetos. É um programa muito feito à base de legislação, através de papéis, e um pouco afastado dos exemplos práticos. Portanto, tem coisas positivas e é bom que, após praticamente 20 anos de desprezo perante a habitação pública e pelo aumento da oferta de habitação, o Governo agora esteja compenetrado em aumentar a oferta de habitação pública e a encarar o problema. Mas não se resolve do dia para a noite. E essa é, talvez, a principal preocupação que temos. Mas estamos lá, os arquitetos estão lá para ajudar a resolver o problema. Oxalá nos deixem.

"É bom que a sociedade perceba que os arquitetos são aqueles que mais percebem de habitação, porque são aqueles que desenham e estão ligados ao processo de habitação todo, desde a sua conceção até à sua concretização e adaptação da vivência das pessoas"

“Oxalá nos deixem”, diz. A OA viu-se envolvida nesta discussão? O Governo quis ouvir os arquitetos e a OA durante todo este processo?

O Governo ouviu em determinados momentos a OA. Mas uma coisa é ouvir, outra é escutar e incorporar algumas das propostas. Nisso tenho mais dúvidas. Ouviu menos do que seria necessário e incorporou muito menos do que seria desejável.

A sua tese de doutoramento, há cerca de 15 anos, estava muito focada na questão da habitação. O que é que mudou no setor durante este período? 

É muito curioso que quando fiz a minha tese o cenário não era tão negativo. E na altura já havia autores que diziam que a habitação iria ser um dos problemas nas próximas duas décadas. E foi. É muito curioso revisitar alguns destes textos, onde se adivinhavam algumas tendências de pouco investimento público, por um lado. E efetivamente esta complexidade que estava inerente ao habitar e que não estava a ser bem resolvida e conciliada. Evidentemente que o tema da habitação de certa maneira persegue-me, mas agrada-me bastante. 

"É muito curioso que quando fiz a minha tese o cenário não era tão negativo. E na altura já havia autores que diziam que a habitação iria ser um dos problemas nas próximas duas décadas. E foi"

Como é possível, na sua opinião, aumentar a oferta de habitação em Portugal? E possa ser comprada/arrendada pela maioria dos portugueses? 

Há duas dimensões. Uma é que temos de ter consciência que todas as tendências europeias dizem que é preciso apostar mais no parque habitacional ou no parque construído existente. Ou seja, reconstruir, reabilitar e transformar. Porque há muita coisa que não é habitação e que podia ser. Provavelmente, o parque edificado é insuficiente, e as tendências europeias dizem para fazermos uma aposta nisso, até por critérios de sustentabilidade. Por outro lado, quando é mesmo estritamente necessário na edificação nova, há que aumentar a oferta. E essa oferta tem de ir mais pela linha da habitação pública, para poder haver alguma regulação no mercado. 

Em termos de medidas do Governo, algumas têm sido positivas. A questão do monstro burocrático [é importante], mas há outro tema que não tem sido bem tratado e que é uma falha muito importante: tem a ver com a fiscalidade. Quer a fiscalidade verde, quer a fiscalidade ao direito à habitação. Faz sentido que nós continuemos a ter, nomeadamente na habitação, uma fiscalidade altíssima? Os custos com a fiscalidade representam quase 40% senão 50% do produto final. Quer dizer, quando uma pessoa vai adquirir ou arrendar uma casa, 50% do custo que está a ter é para pagar impostos relacionados com a definição da própria habitação, ou seja, na construção, no terreno, no projeto, etc. 

No caso da arquitetura, políticas de fiscalidade verde para os projetos, zero. Mesmo em áreas de reabilitação, onde a construção tem IVA bonificado, ou seja, IVA reduzido, o projeto de arquitetura e de engenharia não têm. Devia haver uma otimização fiscal. As pessoas não podem descontar os custos do projeto, dos serviços do arquiteto e do engenheiro nos seus IRS. Ou seja, não há uma fiscalidade conducente às políticas de habitação e de reabilitação. Estamos a dizer isto há anos, é algo óbvio. Como é que uma certificação energética tem IVA a 23% e um painel solar, que é importado da China, tem IVA reduzido. Não é justo. Os arquitetos portugueses e os engenheiros têm de reclamar sobre esta matéria.

Por falar em fiscalidade, a questão IVA na reabilitação ser reduzido a 6% (na construção, não no projeto, como disse), mas na construção nova não o ser, que lhe parece? É um tema criticado por vários ‘players’ do setor imobiliário...

O IVA manter-se a 23% no caso da habitação é uma coisa que… não diria que seja uma falta de respeito pelos portugueses, mas de certa maneira é algo que deveríamos encarar com muito mais atenção e com uma reivindicação muito mais forte. Não é aceitável. É daqueles casos em que, de certa maneira, estamos a ser incoerentes. Nós, enquanto sociedade, temos de o encarar e compararmo-nos com outros países, onde claramente a fiscalidade tem sido um dos eixos principais da intervenção das medidas de mitigação dos problemas da habitação, que não acontecem só cá. França, Inglaterra, Turquia… todos têm graves problemas de habitação e têm implementado políticas. A Alemanha teve uma sucessão de políticas com bastante sucesso. Há que ver esses exemplos.

Sede da Ordem dos Arquitetos em Lisboa
Sede nacional da Ordem dos Arquitetos, em Lisboa, onde decorreu a entrevista com o idealista/news Crédito: Luís Rocha

Relativamente aos honorários dos arquitetos. Um estudo conhecido no ano passado concluiu que um em cada cinco arquitetos recebe perto do salário mínimo...

A situação remuneratória dos arquitetos é muito má e devia envergonhar Portugal, porque a nossa arquitetura está num dos níveis mais altos da Europa, diria até do mundo. Temos arquitetura de qualidade, toda a gente nos reconhece isso, mas os nossos níveis remuneratórios, naquilo que são os estudos todos indexados, nomeadamente o estudo europeu a que se referiu, coloca Portugal ao nível de Malta, da Roménia… no mais baixo [possível]. Os arquitetos que trabalham na administração central são os mais mal pagos da Europa, o Estado é que devia dar o exemplo. Isso explica um pouco como nós nos deparamos perante essa situação. 

"A situação remuneratória dos arquitetos é muito má e devia envergonhar Portugal, porque a nossa arquitetura está num dos níveis mais altos da Europa, diria até do mundo. Temos arquitetura de qualidade, toda a gente nos reconhece isso, mas os nossos níveis remuneratórios, naquilo que são os estudos todos indexados (...) coloca Portugal ao nível de Malta, da Roménia… no mais baixo [possível]"

Fala-se do problema demográfico existente no país, já está a começar a acontecer. Ou seja, começam a faltar técnicos para estar a trabalhar nas obras, nos processos ligados, por exemplo, ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Começa a haver escassez de técnicos em algumas zonas. Ou seja, não estarmos a encarar a regulação da carreira enquanto outros países o conseguem fazer. Na engenharia isso também acontece, mas o caso dos arquitetos consegue ser pior que o dos engenheiros. São classes profissionais que dizem muito a Portugal e que estão a ser maltratadas.

E muitos dos jovens arquitetos com formação qualificada acabam por emigrar!

A emigração entre os jovens qualificados de arquitetura e engenharia é muito grande. Os valores são muito significativos. são cursos de cinco anos, muito complexos, com custos elevados. Se nós tivéssemos que no início da nossa vida de trabalho seguir os modelos anglo-saxónicos ou americanos ou ingleses, em que os primeiros anos de trabalho são, no fundo, para pagar aquilo que foram os custos da formação, os nossos arquitetos portugueses estavam com um problema grande. Não conseguiriam, porque entram no mercado de trabalho com níveis remuneratórios muito baixos e muitas vezes tendem a acumular até com outros trabalhos ou ocupações, que não têm o nível de complexidade da arquitetura, mas que são melhor remunerados. Não é aceitável. 

Estamos a criar técnicos altamente qualificados, as universidades de arquitetura portuguesas são atraentes até para os países mais desenvolvidos – temos desde asiáticos, europeus e americanos a vir estudar para o país – e depois, na integração no mercado de trabalho, falhamos, porque a profissão está completamente desregulada. Os sucessivos governos não têm feito nada para tratar destas matérias. E haverá um momento, tal como na habitação, em que o problema surge e é muito difícil de resolver.

Qual é o estado da nação da arquitetura?

É muito interessante que, apesar de todos os problemas, a arquitetura portuguesa continua a dar provas de grande vivacidade e com uma resistência extraordinária. Tivemos recentemente arquitetos portugueses a ganhar concursos na Europa, na Finlândia, Albânia, Suíça. Tivemos uma série de nomeados para prémios internacionais da maior qualificação. Continuamos a ter grande aceitação. 

A qualidade da arquitetura que se está a realizar em Portugal é boa, a qualidade do trabalho dos arquitetos é boa. Apesar da legislação, do monstro burocrático, continuamos a fazer boa arquitetura. Significa que os arquitetos parece que têm uma missão difícil, têm uma capacidade enorme de lutar contra as adversidades. É uma das profissões que dá maior reconhecimento a Portugal e, portanto, só posso fazer uma análise positiva daquilo que são os nossos principais representantes, seja dos clássicos que já foram Pritzker, seja dos que estão a chegar – e já se começa a falar de alguns nomes que podem também estar nessa linha, ao ponto de serem reconhecidos internacionalmente, o que é extraordinário. 

"O cenário da arquitetura é bom, o da profissão é que não. E este temos de acautelar para que uma coisa não afete a outra, para que continuemos a ter arquitetura de grande qualidade. E mais que isso: a arquitetura pode ser um ativo de Portugal e inclusive promotor de uma economia exportadora e pujante. Estamos a desperdiçar essa oportunidade através dos arquitetos"

Portanto, o cenário da arquitetura é bom, o cenário da profissão é que não. E este temos de acautelar para que uma coisa não afete a outra, para que continuemos a ter arquitetura de grande qualidade. E mais que isso: a arquitetura pode ser um ativo de Portugal e inclusive promotor de uma economia exportadora e pujante. Estamos a desperdiçar essa oportunidade através dos arquitetos.

Portugal viveu nos últimos anos, e ainda vive, um ‘boom’ turístico e atraiu, e continua a atrair, muito investimento estrangeiro. Que responsabilidade teve e tem a arquitetura neste fenómeno, de que forma tem contribuído para alimentar esta tendência? 

Toda essa explosão, esse desenvolvimento nas principais áreas urbanas, nomeadamente em Lisboa e no Porto… [Mostra que] não precisamos de importar arquitetos. Nós conseguimos, nós fazemo-lo. E nota-se que, por exemplo, ao nível turístico, as pessoas vêm para ver a qualidade da reabilitação das nossas cidades, os nossos edifícios. E fizemo-lo através da capacidade instalada, o que significa que a arquitetura deu um grande contributo ao país.

[Mas] se falar com os nossos principais ateliers de arquitetura e de engenharia, vai ver as dificuldades que eles têm em serem competitivos no mercado internacional. Têm muita dificuldade, até pelas poucas capacidades que lhes são dadas. É uma pena.

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