Dos sonhos aos grandes desafios do mercado, num cenário de crise energética. Pedro Martins Barata da Coopérnico em entrevista.
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cooperativa de energia
Pedro Martins Barata fala da Coopérnico em Portugal idealista

A crise energética, que estalou no mundo e se vive em Portugal - muito por efeito da Guerra na Ucrânia - não só afeta os consumidores domésticos e industriais, como tem afetado o trabalho das principais comercializadoras de energia do nosso país. Em virtude do aumento do preço mundial do petróleo, do gás natural e, por sua vez, da eletricidade, parte dos players do mercado de energia começaram a lutar pela sobrevivência. E a produção de energia para autoconsumo, a par dos projetos para tornar as casas e os edifícios mais sustentáveis, ganha uma nova relevância para as famílias e empresas, num contexto de subida dos preços da energia no mercado e dependência energética do exterior. Exemplo disso é a comunidade de energia renovável da Alta de Lisboa.

Comercializadores como a HEN Serviços Energéticos, a PH Energia ou a ENAT Energias tiveram que cessar atividade e a Coopérnico - Cooperativa de Desenvolvimento Sustentável também viu a sua estrutura de negócio afetada, algo sem precedentes. Mesmo como “caso único na Europa”, a Coopérnico optou por dar um conselho de amigo aos seus clientes e informá-los de que teriam que mudar para um tarifário indexado ao preço da eletricidade no mercado livre ou passariam para o Comercializador de Último Recurso (CUR). Tudo porque, em setembro do ano passado, a Coopérnico deixou de ter tarifas fixas de eletricidade.

Apesar das dificuldades e mesmo sem fins lucrativos, a Coopérnico ainda está de pé. De certo modo, encontrou um caminho para colocar um travão nas suas sucessivas perdas. Mais do que perceber como é ser cliente de eletricidade da Coopérnico, o idealista/news, em entrevista com um dos membros voluntários da direção da cooperativa, procura entender a sua adaptação aos grandes desafios. Pedro Martins Barata conta o que tem sido feito pela cooperativa e como esta foi, nas suas palavras, o primeiro passo para a "independência energética dos consumidores" em Portugal.

Energias renováveis
Pixabay
Como surge a ideia de criar uma cooperativa de energias renováveis em Portugal, a Coopérnico?

Mesmo não sendo membro fundador, posso dizer que a Coopérnico nasceu em 2013, sendo a primeira cooperativa de energias renováveis em Portugal. Foi criada por um conjunto de pessoas motivadas a fazer algo para a democratização energética. O que quero dizer com isto? O nosso objetivo era inserir os cidadãos dentro do mercado.

Em muitos países da Europa, sobretudo nos países nórdicos, há a tradição dos consumidores decidirem por eles próprios que energia querem consumir e como querem consumir. Na Alemanha, por exemplo, existem distribuidoras de energia que são propriedade de municípios ou associações de moradores. Cada pessoa pode decidir que energia quer e como a mesma é produzida. Esse é o espírito da Coopérnico para a autonomia energética dos consumidores.

[…] Há possibilidade de haver uma ligação direta entre o consumidor e a produtora de energia, sem necessidade de passar pelos outros agentes, sobretudo se o processo implicar custos adicionais.

Como Coopérnico afirmamos que há possibilidade de haver uma ligação direta entre o consumidor e a produtora de energia, sem necessidade de passar pelos outros agentes, sobretudo se o processo implicar custos adicionais. O consumidor pode ir buscar a energia onde quiser, por exemplo, nas suas proximidades, a partir de um painel fotovoltaico instalado na casa de um vizinho.

Nestes quase 10 anos conseguiram alcançar esta "autonomia energética"?

Infelizmente em Portugal o nosso objetivo teve várias condicionantes, fortemente relacionadas pela forma como o mercado energético se estrutura.

Temos os atores responsáveis pela produção de energia, outros pela transmissão e pela distribuição e, por último, temos a comercializadora. É ela que faz a ligação com o consumidor. A nível europeu, as coisas funcionam assim há cerca de 20 anos.

Como Coopérnico afirmamos que há possibilidade de haver uma ligação direta entre o consumidor e a produtora de energia, sem necessidade de passar pelos outros agentes, sobretudo se o processo implicar custos adicionais. O consumidor pode ir buscar a energia onde quiser, por exemplo, nas suas proximidades, a partir de um painel fotovoltaico instalado na casa de um vizinho.

Assim surge o conceito de cooperativa?

Precisamente. Permitimos aos cidadãos comuns investir em projetos de produção de energia espalhados pelo país, por exemplo, em parques eólicos ou em parques com painéis fotovoltaicos.

O nosso conceito de cooperativa está muito associado à economia social, a instituições particulares de saúde, lares de terceira idade, creches e pequenas entidades corporativas dentro de uma aldeia ou vila.

Energia fotovoltaica
Projeto painel fotovoltaico Coopérnico
Por não dispor inicialmente de garantias financeiras, a Coopérnico não começou pelo lado da comercialização, como fizeram as restantes cooperativas europeias.

Somos um caso único na Europa porque começámos pelo lado oposto, ou seja, começámos por investimentos. Os cidadãos investem na aquisição de títulos de capital social da nossa cooperativa.

O nosso conceito de cooperativa está muito associado à economia social, a instituições particulares de saúde, lares de terceira idade, creches e pequenas entidades corporativas dentro de uma aldeia ou vila.

Acredita que essa é área da Coopérnico de maior sucesso?

Este modelo inicial da Coopérnico ser um veículo para quem gosta de investir em energias renováveis tem realmente garantido o nosso sucesso. Estamos a aumentar o nosso portfólio de investimento, por isso diria que a área da Coopérnico produção continua em crescimento com bons lucros.

Ser dono da própria energia: “Haverá consumidores capazes de produzir”
Mapa de produção de energia Coopérnico Coopérnico
Mesmo assim, acho importante distinguir a Coopérnico como produção, e a Coopérnico como fornecedora. São coisas diferentes.

A Coopérnico é uma entidade sem fins lucrativos e não conseguimos competir nas atuais circunstâncias. Obviamente, a Invasão da Ucrânia e eventual crise do gás natural russo pioraram a situação.

Quais têm sido os maiores desafios da Coopérnico como fornecedora de energia e como os têm conseguido superar? 

Neste caso tem sido uma experiência complicada por ser uma área de negócio diferente. Enquanto a produção é um campo discreto, porque temos apenas 20 projetos, na comercialização temos que acompanhar os nossos clientes todos os meses.

Atualmente existem apenas 1.000 faturas Coopérnico que chegam à casa dos nossos clientes. No panorama nacional é relativamente pouco e não vou estar a enganar, estamos a perder clientes. Com a luz e o gás mais caros, assim como outras circunstâncias relacionadas com as alterações climáticas - que têm originado períodos de seca longos -, tivemos que deixar de ter tarifas fixas de eletricidade. Caso contrário seríamos obrigados a fechar o negócio, como infelizmente aconteceu com algumas empresas.

A Coopérnico é uma entidade sem fins lucrativos e não conseguimos competir nas atuais circunstâncias. Obviamente, a Invasão da Ucrânia e eventual crise do gás natural russo pioraram a situação.

Esse foi o maior desafio da Coopérnico no último ano?

Sem dúvida. Foi das decisões mais duras que tivemos de tomar. Nas atuais condições do mercado não podemos fornecer energia a partir de uma tarifa fixa. Não queríamos aumentar os custos e tivemos de alertar os nossos clientes.

Painéis fotovoltaicos
Coopérnico
Dissemos “ou mudam de comercializadora ou passam a ter contratos com um tarifário indexado”. Foi dolorosíssimo, porque antes oferecíamos preços competitivos, mas já não conseguíamos acompanhar o mercado. Por termos uma margem de negócio limitada, o modelo da Coopérnico tornava-se inviável.

Tendo em conta as dificuldades, ainda é possível tornar-se cliente de eletricidade da Coopérnico?

Neste momento, a mensagem para os consumidores de energia é esta: se querem realmente ajudar a Coopérnico, comprem títulos de capital social. Poderá parecer absurdo um membro da direção de uma fornecedora de energia dizer “por favor não comprem aquilo que temos para oferecer”. Mas é a situação que temos.

Pela minha própria experiência, fui cliente Coopérnico até há dois meses. Depois decidi que não fazia sentido continuar, mas investi em títulos. Temos vindo a fazer esse aconselhamento aos nossos cooperantes.

Nestes períodos conturbados continuam a existir boas notícias?

No âmbito de uma série de projetos europeus, a Coopérnico tem finalmente um prédio que está a permitir desenvolver um modelo energético mais democrático. Falo do Projeto Compile – Autoconsumo Coletivo na Alta de Lisboa que é a nossa primeira comunidade de energia renovável.

energia para autonsumo
Creche Porto Alto - Projeto Coopérnico Coopérnico
Ali encontra-se uma instalação de painéis fotovoltaicos que alimentam vários consumidores. Neste momento, estamos a fornecer serviços de assessoria e, embora seja uma ideia preliminar, queremos expandir. Não tem de ser outro prédio, poderemos fazê-lo numa aldeia ou num parque industrial. Existem várias hipóteses para democratizar o acesso à energia.

A Coopérnico encontra aqui uma forma para renascer?

Acreditamos que a área das comunidades de energias renováveis é importante de dinamizar. A União Europeia, numa das suas últimas diretivas sobre a reforma do mercado energético, aposta na sua promoção.

Para que uma comunidade de energias renováveis seja consolidada, importa perceber o perfil de consumo, isto é, quando é que as pessoas estão em casa e como consomem. Esta informação está nas mãos das distribuidoras, porque são elas que recolhem os dados. Não é tão simples chegar até ela.

Queremos projetos de autoconsumo coletivo que possam abrir horizontes e que permitam entender os comportamentos em termos de energia, seja num prédio, numa aldeia ou parque industrial. Caberia à Coopérnico a gestão e arquitetura das comunidades. Nós seriamos o intermediário entre o consumidor e o mercado.

produção de energia renovável
Coopérnico
No entanto tem sido uma tarefa complicada. Para que uma comunidade de energias renováveis seja consolidada, importa perceber o perfil de consumo, isto é, quando é que as pessoas estão em casa e como consomem. Esta informação está nas mãos das distribuidoras, porque são elas que recolhem os dados. Não é tão simples chegar até ela.

Em termos práticos que caminho precisa ser feito para alterar esta situação?

Continuam a existir vários obstáculos. O maior de todos está relacionado com o volume de investimento exigido para criar um parque fotovoltaico ou eólico em Portugal. São garantias muito altas, praticamente inalcançáveis por uma cooperativa voluntária como a Coopérnico. Se é possível facilitar mais? Penso que sim.

Seria interessante ter na legislação portuguesa ou europeia algo relacionado com as comunidades de energias renováveis. Poderia ser criada uma espécie de 'sandbox', em que as regras fossem temporariamente alteradas, para experimentar e perceber se esse caminho funciona. Se isso for possível, a Coopérnico tem futuro e estaríamos prontos para voltar à comercialização.

Imaginemos então que a situação do mercado energético melhorava. Quais seriam as vantagens em aderir à Coopérnico?

O verdadeiro argumento dos dias de hoje é o da independência energética, além dos preços competitivos que poderíamos oferecer como fizemos antes. Os consumidores em vez de estarem a comprar energia a grandes instalações e mercados, comprariam a pequenos agentes. Os consumidores teriam consciência de estar a contribuir para um projeto que valoriza a energia produzida em Portugal.

Cooperativa Coopérnico
Equipa Coopérnico Coopérnico

Seria interessante ter na legislação portuguesa ou europeia algo relacionado com as comunidades de energias renováveis. Poderia ser criada uma espécie de 'sandbox', em que as regras fossem temporariamente alteradas, para experimentar e perceber se esse caminho funciona. 

Enquanto cooperativa, o dinheiro obtido não seria gasto em salários de administradores, mas seria sim re-investido prioritariamente em projetos de expansão de energia renovável. A crise do gás natural é um acidente grave, mas creio que pode ser contornada se facilitados os processos burocráticos em relação às energias renováveis. Teremos consumidores capazes de produzir e consumir a sua própria energia. Serão os donos da sua própria energia.

Ao diminuirmos o consumo da rede nacional, diminuiríamos a dependência dos grandes produtores, por exemplo, dos russos, e poderemos ser capazes de garantir a tão desejada transição energética. No fim de contas estaríamos a trabalhar contra a pobreza energética que afeta o nosso país. Tudo isto está no nosso ADN, é realmente a nossa visão.

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