Economista Vera Gouveia Barros analisa mercado residencial em Portugal e as medidas do Governo para a habitação, em entrevista.
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A crise na habitação é uma realidade em Portugal, que se tem vindo a agudizar ao longo dos últimos anos. O Alojamento Local, os Vistos Gold e os Residentes Não Habituais fazem, habitualmente, parte do discurso político, e também muitas vezes na sociedade, na hora de encontrar "culpados" para a subida dos preços das casas. Mas a economista Vera Gouveia Barros - reconhecendo que há "graves problemas por resolver na habitação" - rejeita, no entanto, estas leituras mais simplistas e pede diagnósticos aprofundados, com base em dados e análises fundamentadas, em vez de "bodes expiatórios". "Às vezes geram-se estas ideias, mas quem sabe de estatística percebe que existe uma coisa que é a correlação de dois fenómenos que acontecem ao mesmo tempo e que têm ali alguma coisa que os liga, e outra coisa, que é diferente, é a causalidade", explica em entrevista ao idealista/news, argumentando que há "uma série de indicadores que nos deveriam fazer pensar até que ponto é que essa subida dos preços das casas corresponde efetivamente a uma violação do direito da habitação".

De uma forma geral, a investigadora em Esconomia e Habitação lamenta que o Mais Habitação - agora em consulta pública - venha colocar em causa a confiança no mercado, com medidas "coercivas e proibitivas", em vez de incentivos. Neste campo, recomendaria ao Executivo de António Costa uma "descida significativa do IRS para os contratos de arrendamento" e "olhar para o IMT, para usá-lo também como um instrumento de promoção das alterações da habitação ao longo da vida", por exemplo.

Felicita o Governo pela "grande tentativa de aumentar a oferta pública de habitação", mas recorda que os jovens e os mais idosos ficaram de fora do pacote, sem medidas especificas e diretamente pensadas para estes grupos da população. Por outro lado, considera ser necessário "pensar de forma integrada" e "criar condições de atratividade e serviços fora das duas áreas metropolitanas", de Lisboa e Porto, "porque sabemos que toda a gente não pode viver no mesmo sítio".

Especialista em habitação
idealista/news

Sobre o elevado número de casas vazias em Portugal - que levou o Governo socialista a avançar com uma medida de arrendamento forçado de casas devolutas, que está a gerar forte polémica e contestação - a especialista em habitação e turismo defende que "é preciso descobrir não só o património que existe, mas também por que motivo é que ele não está colocado no mercado".

Questionada sobre a existência de uma bolha imobiliária em Portugal, a mestre em Economia e Estudos Europeus (ISEG) recorre aos conceitos técnicos para responder de forma pedagógica: "Quando tenho uma bolha especulativa, tenho aumento de preços. Mas esse aumento de preços não significa necessariamente que exista uma bolha especulativa", explica, detalhando que "a especulação é um fenómeno psicológico, em que as pessoas se convencem que o preço de um ativo, neste caso da habitação, vai subir e então compram as casas só com o objetivo de voltar a vendê-las pouco tempo depois, realizando um lucro".

Ora, segundo esclarece Vera Gouveia Barros, "no caso da habitação, nós temos uma boa medida daquilo que se chama o valor de uso da habitação, que é dado no arrendamento, porque nas rendas que as pessoas se dispõem a pagar é para viver na casa e não é para terem nenhum lucro e observamos que a evolução do preço nas vendas tem sido semelhante à do arrendamento". "E, portanto, se esse rácio se tem mantido mais ou menos constante, é um indicador de que não estamos, na verdade, perante um fenómeno de especulação", salienta.

Governo faz mexidas na habitação em Portugal
Foto de Ronan Furuta na Unsplash

Como avalia o pacote Mais Habitação, anunciado pelo Governo socialista de António Costa? 

É um conjunto vasto de medidas, algumas positivas, outras inócuas e ainda algumas que espero que, depois da consulta pública, possam ser refinadas ou mesmo eliminadas, uma vez que se baseiam em equívocos sobre o funcionamento do mercado da habitação e ignoram até princípios básicos da economia. Nomeadamente, a que tem a ver com a fiscalidade associada ao arrendamento. Fazê-lo por escalões, por exemplo, não é uma boa ideia ou constante referência. Ou também aquilo que são as medianas num mercado em que a mediana é uma má medida para o caracterizar. 

O Governo, nos últimos meses, tinha anunciado o lançamento de vários estudos na área da habitação, para ajudar a fundamentar a tomada de decisões, nomeadamente sobre os vistos gold e o mercado de arrendamento, mas avançou com este pacote legislativo sem revelar os resultados em causa. O que lhe parece esta estratégia?

Há alguma inconsistência em se adotar medidas e ao mesmo tempo estar à espera de resultados de estudos. Mas isso não me espanta. Não só porque sei que muitas vezes o tempo da política é diferente daquilo que é o tempo dos estudos, da academia. E também sei que muitas vezes é mais fácil adoptar medidas do que ter uma ação quase pedagógica de mostrar dados, de levantar questões, de discutir os problemas.

"Algumas medidas espero que, depois da consulta pública, possam ser refinadas ou mesmo eliminadas, uma vez que se baseiam em equívocos sobre o funcionamento do mercado da habitação e que ignoram até princípios básicos da economia"

Recordo-me, aliás, de uma série de medidas que foram adoptadas antes, relativamente ao mercado de arrendamento, na sequência até da Nova Geração de Políticas de Habitação, ao mesmo tempo que se estava a discutir a Lei de Bases da Habitação, por exemplo, quando acharia que a sequência devia ser a inversa. Primeiro teria uma lei de bases que, no fundo, como o próprio nome indica, deveria servir de base para a legislação depois a aprovar para o setor. Portanto, parece haver aqui alguma incongruência nesta coisa de eu, por um lado, estar a querer estudar, mas por outro, não aguardar o tempo desses estudos para adoptar medidas.

Ou seja, seria fundamental um diagnóstico mais aprofundado que servisse de base para se agir a nível político na área da habitação em Portugal?

Costumo dizer que não pode haver boa política pública se não tivermos um bom diagnóstico, porque a política pública serve para resolver um problema e, para isso, tenho de ter o problema devidamente estudado e caracterizado com dados. Idealmente, até para definir objetivos que sejam eles próprios também quantificados. Ora, isso no mercado da habitação está a faltar. Temos um discurso público que fala muito de crise habitacional, associando-a àquilo que tem sido a subida dos preços, mas depois temos uma série de indicadores que nos deveriam fazer pensar até que ponto é que essa subida dos preços corresponde efetivamente a uma violação do direito da habitação.

Aquilo que os dados do INE mostram é que a taxa de sobrecarga tem estado a diminuir para os vários regimes de ocupação, tendencialmente desde 2015. Mostram-nos que a carga mediana também não está a aumentar. Portanto, temos de olhar para isto com outros olhos, fazer perguntas e ir escavar os dados e perceber o que é que está por detrás disto. E o problema é que, muitas vezes, para interpretar estes dados eu preciso de perceber o tal funcionamento do mercado, porque só assim é que consigo contextualizar os dados e perceber que nem sempre um aumento do preço, ao contrário do que sucede noutros mercados, é sinónimo de haver um problema.

Depois, por outro lado, há coisas que me parecem evidentemente uma violação do direito à habitação que não parecem comover ninguém. Estou a pensar, por exemplo, nas dificuldades das pessoas que têm uma incapacidade ao nível de mobilidade e que vivem em casas que não estão adaptadas. Um país que está a envelhecer, devia fazer-nos refletir sobre o que vai ser a habitação das pessoas idosas e isso está completamente fora do discurso público.

"Um país que está a envelhecer, devia-nos fazer refletir sobre o que vai ser a habitação das pessoas idosas e isso está completamente fora do discurso público"

Considera, portanto, que era preciso ter ido mais longe nas medidas anunciadas?

Algumas delas ainda não se conhece os detalhes e, como se sabe, Deus e o Diabo é neles que está. E parecem-me até contraproducentes. Falou-se em criar confiança junto dos proprietários e não me parece que isso vá acontecer, porque medidas coercivas não são propícias a criar confiança. Por outro lado, na parte dos incentivos, há uma boa intenção, mas falta aprimorar, perceber detalhes técnicos, porque é a tal especificidade do funcionamento do mercado de habitação. E há outras que me parece que podem facilmente ser pervertidas, se não forem devidamente regulamentadas. Estou a pensar no caso do subarrendamento. Afinal, o Estado constitui-se como um intermediário e não queremos ter o Orçamento do Estado a cobrir a diferença entre um conjunto de pessoas próximas e outro conjunto de pessoas próximas. Já os vistos gold parece-me que serão inócuos, porque representam uma fatia mínima do mercado. E depois ficou a faltar alguma audácia em algumas medidas. 

Como por exemplo?

Estou a pensar, sobretudo ao nível da fiscalidade, por exemplo, fazer uma descida significativa do IRS para os contratos de arrendamento. Olhar para o IMT e usá-lo também como um instrumento de promoção das alterações da habitação ao longo da vida, porque as casas não são todas iguais e as necessidades que uma pessoa vai tendo de habitação também não vão sendo as mesmas. O IMT não se deveria constituir como um entrave a essa mudança de casa. Se olharmos para aquilo que são as taxas de sobrelotação, por um lado, mas também para a taxa de ocupação, vemos que se calhar havia aqui muito espaço para fazer uma afetação mais eficiente na ocupação do espaço. Mas sou sempre adepta de que se vá pela via do incentivo e não pela da obrigação ou proibição. E um instrumento fiscal como este tinha um papel a desempenhar aí.

"Ficou a faltar alguma audácia em algumas medidas, ao nível da fiscalidade. Por exemplo, fazer uma descida significativa do IRS no arrendamento. Ou usar o IMT para promover alterações de habitação ao longo da vida"

Governo quer aumentar a oferta de casas em Portugal
Foto de Helena Lopes na Unsplash

Acha que os jovens vão sair a ganhar com o Mais Habitação?

Com as medidas que foram anunciadas, não vejo que os jovens beneficiem especialmente, desde logo porque não houve nada pensado especificamente para este segmento da população. Embora, olhando para escalões de rendimento mais baixos, se possa, por essa via, também atingir uma boa parte da população mais jovem. Confesso que não conheço a distribuição de rendimentos por faixas etárias, mas também acho que estas medidas não serão suficientes para dinamizar o mercado de arrendamento. Em alguns aspetos até receio que funcionem ao contrário, principalmente na parte do mercado privado.

Há uma grande tentativa de aumentar a oferta pública de habitação e saúdo isso. Também compreendo que essa oferta pública de habitação não se tem de fazer necessariamente através da construção de mais casas, até porque os dados mostram que há mais casas que agregados familiares no país e, portanto, essa tentativa de passar algum do património que é privado para o domínio público. Mas depois fica aqui a faltar muita coisa. Fica a faltar perceber, por exemplo, relativamente às casas que estão devolutas, que características é que têm afinal? Elas vêm, de facto, responder àquilo que é a procura de quem necessita de uma habitação? Há todo esse mundo por estudar.

Ou seja, seria preciso aí fazer um diagnóstico para saber que património habitacional é este? Que tipo de casas existem, de que tipologias são, que obras é que necessitam para depois poderem ser melhoradas e aproveitadas?

Sim, é preciso fazer esse diagnóstico de descobrir não só o património que existe, mas também por que motivo é que ele não está colocado no mercado. Afinal, em teoria, quem tem uma casa vazia à partida estará a perder dinheiro face a tê-la arrendada. Portanto, porque é que opta por não o fazer? Que características é que têm essas casas e que características têm as casas que as pessoas procuram?

Mas o diagnóstico deve ir mais além, porque o direito à habitação não é somente um direito a um teto ou a uma morada. Tem um conjunto de outros requisitos, nomeadamente, a ver com a localização da casa, com as infraestruturas que são oferecidas, com os serviços que existem na vizinhança, a oferta de educação, a oferta de saúde, a questão dos transportes. Nós, num país que tem 70% das famílias a viver em casa própria, quando se diz que as pessoas não conseguem ter casa, é preciso perguntar o que é que se está a passar? As pessoas não têm casa e o que é que lhes aconteceu? Estão como sem abrigo? Os números, lamentavelmente, mostram um aumento dessas situações, mas não mostram uma crise de pessoas na situação de sem abrigo. As barracas também, felizmente, não aumentaram. Pelo contrário, fizemos um excelente trabalho de erradicação de bairros de lata.

"Com as medidas que foram anunciadas, não vejo que os jovens beneficiem especialmente, desde logo porque não houve nada pensado especificamente para este segmento da população"

Portanto, estas pessoas que não encontram casa, se 70% delas vivem em casa própria, o que acontece é porque as casas onde estão não correspondem às suas necessidades? E é preciso entender se não correspondem às suas necessidades, porquê? Porque se tornaram pequenas para a família que se quer constituir? Porque não têm condições de habitabilidade? Porque não oferecem escolas com qualidade para os filhos? Porque se perde demasiado tempo nas deslocações entre casa e trabalho? Cada uma destas perguntas, conforme as respostas que se obtenha, vai exigir diferentes intervenções. A política pública de habitação não pode ser pensada simplesmente em como ter casas no mercado.

É preciso pensar de uma forma integrada, como ter serviços, até porque sabemos que nem toda a gente pode viver no mesmo sítio. Aliás, as pessoas certamente não querem viver todas amontoadas no mesmo sítio. E também não podemos desligar aquilo que é a política de habitação do desígnio da coesão territorial. Portanto, não podemos estar, por um lado, preocupados com a desertificação de uma série de regiões do país e, ao mesmo tempo, dizermos que temos de criar as condições para que toda a gente viva nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Isto é inconsistente e incoerente e, portanto, temos de criar também condições de atratividade fora destas duas áreas metropolitanas. O problema da habitação também é esse. 

Ou seja, fala-se muito da crise da habitação, mas sobretudo à volta dos mercados da Grande Lisboa e do Grande Porto. Mas há vida a acontecer fora destas zonas, certo?

O Eça de Queiroz dizia que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. Infelizmente, às vezes parece que as pessoas interiorizaram isso, e quer-se resolver muitas vezes os problemas que podem ser de Lisboa e, eventualmente do Porto, ou às vezes até só de algumas freguesias nestas duas cidades, através de medidas que se aplicam genericamente ao país. Olhe-se o exemplo daquilo que se está a fazer agora com o Alojamento Local (AL). 

Sugiro a leitura daquilo que foi o estudo feito pela Susana Peralta, pelo João Pereira dos Santos e pelo Duarte Gonçalves a propósito do AL em Lisboa e do impacto que teve nos preços da habitação. Concluem que há um impacto efetivamente, mas que está longe de ser o fator que explica, única e primordialmente, o comportamento dos preços.

"Não podemos estar preocupados com a desertificação de certas regiões do país e, ao mesmo tempo, querer criar condições para que toda a gente viva em Lisboa e no Porto. Isto é inconsistente e incoerente e, portanto, temos de criar também condições de atratividade fora destas duas áreas metropolitanas. O problema da habitação também é esse"

O que é que se pretende com esta medida? Já tínhamos áreas de contenção em determinadas freguesias, fazer isto agora ao nível do país terá certamente um impacto grande. E lembremo-nos de que esta é uma atividade muito importante para várias famílias, para algumas é precisamente o seu principal meio de subsistência, e tem sido uma fonte de emprego.

Há estudos que mostram que esta forma de alojamento, mais próxima das comunidades, não só é capaz de captar um segmento de turistas mais sofisticado, como traduz a ideia de que gastam mais dinheiro, tendo um efeito multiplicador maior até do que muitas vezes o alojamento feito em cadeias hoteleiras, por vezes internacionais, que depois até enviam os seus lucros para fora do país. E, desta forma, temos esta solução que vem introduzir uma enorme instabilidade num setor que tem sido importante e uma fonte de dinamismo. Acho que se criou esta noção de que era o grande responsável e depois vai-se atrás de um bode expiatório, sem ter em conta devidamente os impactos que isso possa ter na vida das pessoas.

Alojamento Local gera polémica em Portugal
Foto de Pelayo Arbués na Unsplash

Parece que há na sociedade a ideia enraizada de que o AL e os vistos gold são os grandes culpados da atual crise na habitação... Não partilha desta ideia, portanto?

Às vezes geram-se estas ideias, mas quem sabe de estatística percebe que existe uma coisa que é a correlação de dois fenómenos que acontecem ao mesmo tempo e que têm ali alguma coisa que os liga, e outra coisa, que é diferente, é a causalidade. E ainda existe uma terceira coisa que é coincidência e, portanto, muitas vezes as pessoas observam dois fenómenos simultâneos e tendem a encontrar ali uma relação de causalidade que efetivamente não existe.

Agora isto é especulação da minha parte. especulação não no sentido económico do termo (risos), mas acho que o AL teve um papel muito importante na reabilitação dos centros das cidades, que são, por excelência, locais de turismo. Quem for ler os planos de reabilitação, por exemplo, para Lisboa, vai encontrar precisamente afirmações como a "Baixa de Lisboa não será um centro habitacional, não tem características para isso, é antes uma área que tem uma vocação para serviços e, entre eles, o do turismo".

O próprio parque habitacional de muitas dessas zonas tem também características que não se coadunam com a vivência moderna. Se pensarmos naquilo que era a antiga freguesia do Castelo, em Lisboa, vemos que havia uma parte substancial das casas que tinham até 30 metros quadrados. São casas extraordinariamente pequenas. Se calhar não é isso que desejamos. 

Fala-se muito em gentrificação, mas acho que podemos afirmar que o turismo é responsável por um processo de gentificação, porque a reabilitação trouxe vida a determinadas zonas da cidade que estavam desertas, e eram até perigosas. Recuperou casas que antigamente estavam fora do mercado e ao tornar zonas que estavam completamente fora da perspectiva de vida das pessoas, tornou-as desejáveis. E, portanto, muitas vezes estou a olhar para preços comparando coisas que não são comparáveis.

Quando estou a falar do centro, que são localizações privilegiadas, com um património, muitas vezes arquitetónico, em que não se pode mexer, em que a reabilitação também reflete os custos da preservação desse património, tenho que perceber depois como é que isso também se traduz em termos de mercado imobiliário. Acho que isso criou essa tal sensação de que há casas que não estão acessíveis à maioria da população, mas são casas que se calhar antes também não estavam, simplesmente, porque não existiam e que têm características que as tornam assim caras. 

E na questão dos estrangeiros, sobretudo devido aos vistos gold e ao Regime dos Residentes Não Habituais, há também uma espécie de culpabilização pelos altos preços das casas?

Os vistos gold foi um programa que foi adoptado em circunstâncias específicas, em que o mercado imobiliário passava por uma crise bastante grande, com a associação que isso tinha também ao setor bancário, e foram uma medida precisamente para permitir que o setor não tivesse tantas dificuldades quanto poderia ter.

Note-se, no entanto, que apesar dos montantes envolvidos nestas compras, representam uma fatia muito, muito pequena. É daqueles programas cujo fim eu posso compreender numa perspectiva de princípio, porque posso achar que as questões dos vistos não devem estar associadas a uma capacidade de pagar a habitação, ou seja, no fundo, dizer que o mérito que é necessário para residir em Portugal não deve estar associado à conta bancária. Compreendo isso e tenho simpatia por esse princípio, mas numa lógica meramente de resultados para o mercado imobiliário não antevejo qualquer efeito.

"Fala-se muito em gentrificação, mas podemos afirmar que o turismo é responsável por um processo de gentificação, porque a reabilitação trouxe vida a determinadas zonas das cidades que estavam desertas, e eram até perigosas. Recuperou casas que antigamente estavam fora do mercado e tornou-as desejáveis"

Mas não poderá haver o risco de deslocalização do investimento estrangeiro para outros países?

Há um montante de investimento que provavelmente se perderá, e porque há investimento que gera riqueza para determinados setores, como a construção, a promoção imobiliária... Sem dúvida. Mas mais que isso, é esta sensação de que as regras estão constantemente a mudar. Nós temos um programa que foi criado há não assim tanto tempo e que, recentemente, até foi alterado como uma forma de promover esse investimento fora das tais áreas metropolitanas e canalizá-lo para outras zonas do país. E estamos agora a acabar com ele... E acabamos com o programa sem que se tenha visto quaisquer dados a sustentar esta decisão.

Cria-se aqui a tal instabilidade que não é amiga do investimento e não só do investimento estrangeiro, atenção, do próprio investimento nacional, que se vê perante regras que estão constantemente a ser alteradas. Isto não é de modo algum o promotor da confiança de que tanto falava o Governo no anúncio das medidas.

Faz sentido falar numa bolha imobiliária em Portugal, no atual contexto de mercado?

Fala-se muito de especulação a propósito do mercado imobiliário e era bom que se compreendesse o que é a especulação. Quando tenho uma bolha imobiliária, uma bolha especulativa, tenho aumento de preços. Mas esse aumento de preços não significa necessariamente que tenha uma bolha especulativa. O que acontece quando há especulação é um fenómeno psicológico, digamos assim.

As pessoas observam uma subida de preços e, a partir desse momento, convencem-se de que o preço do ativo, neste caso da habitação, vai subir e então compram casas só com o objetivo de voltar a vendê-las pouco tempo depois, realizando um lucro. Ou seja, o facto é causa e consequência de si mesmo. No caso da habitação, temos uma boa medida daquilo que se chama o valor de uso da habitação, que é dado no arrendamento, porque nas rendas que as pessoas se dispõem a pagar é para viver na casa e não é para terem lucro. Portanto, falar em especulação em termos de arrendamento é uma coisa que não faz sentido nenhum, por definição. 

"Cria-se a tal instabilidade que não é amiga do investimento e não só do estrangeiro, atenção, do próprio nacional, que se vê perante regras que estão constantemente a ser alteradas"

O que observamos é que a evolução do preço nas vendas tem sido semelhante àquilo que é a evolução do preço do arrendamento. Portanto, se esse rácio se tem mantido mais ou menos constante, se não tem aumentado, eu não tenho por aí - obviamente que posso ter outros fatores por detrás a explicar esse comportamento -, mas esse é um indicador de que não estamos, na verdade, perante um fenómeno de especulação.

Precos das casas e do arrendamento a subir
Foto de Sindre Fs on Pexels

Porque é que há, então, tantas pessoas (e o próprio Governo) a falar de especulação imobiliária? 

É pelo facto do crescimento dos preços não ter acompanhado o crescimento dos rendimentos. Mas aquilo que temos para calcular o crescimento dos rendimentos são os salários. A população empregada em Portugal anda perto dos 5 milhões e, portanto, estamos a falar de 5 milhões de dados. No ano passado venderam-se em Portugal cerca de 165.000 casas e os dados que temos para o preço da habitação respeitam a essas 165.000 casas. Para as outras casas, não conseguimos simplesmente saber o preço.

Ao contrário do que acontece com outros bens, em que consigo saber o preço deles, mesmo que eles não sejam comprados, no caso da habitação, isso não acontece e, portanto, não posso estar a comparar a evolução dos preços que correspondem 165.000 compradores, cujo rendimento eu não conheço. Podem nem sequer ser gerados no país. Temos o caso dos trabalhadores remotos, que têm salários pagos na Alemanha, em Inglaterra, por exemplo, e que não estão a entrar nas estatísticas portuguesas. Inclusivamente, alguns destes rendimentos até podem não advir do trabalho, podendo ser rendimentos de capital.

"No caso da habitação, temos uma boa medida daquilo que se chama o valor de uso da habitação, que é dado no arrendamento, porque nas rendas que as pessoas se dispõem a pagar é para viver na casa e não é para terem nenhum lucro. Portanto, falar em especulação em termos de arrendamento é uma coisa que não faz sentido nenhum, por definição"

Se olhar para aquilo que são as estatísticas relativamente ao esforço que as famílias estão a fazer para pagar a habitação, não vejo essas estatísticas a mostrar maiores dificuldades e, portanto, isso dever-me-ia levar a pensar o que é que está a acontecer, a querer perceber exatamente quem são estas pessoas que estão a comprar casa. E depois devíamos pensar: então mas quem não está a comprar casa que problema é que tem? Quer comprar casa efetivamente e não conseguiu? Porquê?

Isso é interessante, porque dessas casas transacionadas, a maior parte dos compradores são nacionais. Nos novos projetos de construção e promoção imobiliária, muitas casas são vendidas em planta, por exemplo, e 80%, 90% dos compradores são portugueses. Ou seja, fala-se nesta questão dos preços estarem estarem a subir por efeito dos estrangeiros, mas a verdade é que os portugueses, ainda assim, são os principais compradores de imóveis, certo?

Os dados que conhecemos, e o INE agora até faz uma distinção entre a residência do comprador, mostram que dos 165.000 imóveis que foram transacionados em 2021, só 6% é que foram adquiridos por não residentes. Aqui o critério não é o da nacionalidade, é o da residência. Isto quer dizer que 94% vive em Portugal. E destes a grande, grande maioria são famílias. Portanto, o discurso sobre as compras serem feitas por fundos imobiliários estrangeiros não tem adesão à realidade que nos é transmitida pelos dados.

Tendo em conta a conjuntura que se vive atualmente, de alta inflação, taxas de juros e custos de construção a subir - com estas medidas do Governo pelo meio -, como é que antecipa o comportamento do setor residencial?

Não vou correr o risco de falhar a fazer previsões, porque não sei. Não consigo mesmo achar que o mercado vai no sentido dos preços continuarem a crescer ou, pelo contrário, diminuírem. Isto porque temos, de um lado, fatores que deverão condicionar a procura, reduzindo-a, o caso claríssimo da subida das taxas de juro, porque cria uma dificuldade para quem precisa de contrair crédito para comprar casa, mas também, porque a partir do momento em que comecem a subir as taxas de juro nos depósitos, isso significa para quem tem poupanças para aplicar, que tem uma alternativa àquilo que é o investimento no mercado imobiliário.

"O discurso sobre as compras serem feitas por fundos imobiliários estrangeiros não tem adesão à realidade que nos é transmitida pelos dados"

Mas temos um outro lado, que é o da oferta, com os custos de construção, em termos de matérias-primas e em de mão-de-obra a aumentar. Nesse aspeto, as medidas que foram anunciadas no âmbito deste pacote têm alguma alguma parte relativa aos licenciamentos que, surtindo efeito, representará uma diminuição dos custos de construção, porque quando alguém que está a promover um empreendimento imobiliário tem de ficar três, quatro, cinco anos à espera, isso representa, para preço promotor, um custo, e é um custo que depois se vai repercutir no preço a que está disposto a vender a habitação. Relativamente à evolução do mercado, parece-me que há aqui fatores que contribuem para uma grande incerteza.

Apesar de tudo é de realçar, olhando para o contexto europeu, que os preços das casas em Portugal continuam a estar abaixo daquilo que se pratica no exterior. Considerando aqui a tal mediana, que não é uma boa medida, e portanto, até num mundo em que o trabalho é cada vez mais móvel e se consegue viver num sítio estando a trabalhar para outro, pode haver continuar a haver aqui um estímulo da procura por essa via? Não sei... É difícil fazer essa futurologia.

"Observamos que a evolução do preço nas vendas tem sido semelhante à do preço do arrendamento. E se esse rácio se tem mantido mais ou menos constante, se não tem aumentado, é um indicador de que não estamos, na verdade, perante um fenómeno de especulação"

Há algum tema que ache importante reforçar? Ou quer deixar alguma mensagem, de confiança ou de desconfiança, por exemplo?

Diria que o direito à habitação é um direito humano. E faz sentido que assim seja, porque, na verdade, ele é condição para que eu possa gozar do direito à saúde, do direito à educação, a uma vida digna. E depois, se não tiver qualidade na minha habitação isso compromete os tais resultados que, por sua vez, geram a desigualdade habitacional. Isto acaba por ser um círculo vicioso e por isso é um direito demasiadamente importante para que não se adoptem boas políticas públicas neste âmbito. E boas políticas públicas precisam de um bom diagnóstico e precisam de olhar para o direito da habitação nas suas várias dimensões, bem como olhar para aqueles que são os públicos mais vulneráveis, que tipicamente são aqueles que ficam excluídos como sempre.

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