Artista portuguesa venceu o Prémio idealista de Arte Contemporânea 2023, com a obra "South Circular", que está patente no SIL.
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“Carregamos vários mundos. Isso é uma das reflexões fundamentais da minha obra artística”. Mónica de Miranda nasceu em Portugal e tem origens angolanas, origens essas que transporta, de certa forma, para os trabalhos que desenvolveu ao longo da carreira. Uma dessas obras chama-se “South Circular” (“Circular do Sul”) e está exposta no stand do idealista no Salão Imobiliário de Portugal (SIL) – estará também exposta na Feira Imobiliária de Madrid (SIMA), que decorre de 24 a 27 de maio –, tendo vencido a 5ª edição do concurso Prémio idealista de Arte Contemporânea 2023. “É um projeto de investigação e de mapeamento da cidade de Lisboa, ou seja, de uma cidade invisível. A cidade que existe às periferias e que está ligada aos fluxos migratórios e de diáspora”, diz ao idealista/news, considerando que “há uma outra Lisboa que está escondida”.

Mónica de Miranda revela que é a partir das memórias que constrói a narrativa do seu trabalho e que a origem do mesmo nasce daquilo a que chama “geografia dos afetos”. “A mim interessa contar histórias. Geralmente, o lugar diz-me qual é a história. Estou interessada nas histórias dos lugares e também na relação e o espaço entre as fronteiras. (…) Interessa-me as várias histórias que esses lugares têm.”, conta. 

O idealista/news teve a oportunidade de conhecer a artista portuguesa – numa conversa realizada no seu estúdio em Lisboa – e desvenda, em baixo, alguns dos seus "segredos". Uma “viagem” que convida a fazer reflexões. 

Prémio idealista de arte contemporânea
Mónica de Miranda, vencedora do prémio idealista de Arte Contemporânea 2023, no seu estúdio em Lisboa Diogo Coelho

Como define o seu trabalho, a sua arte, as suas obras?

A mim interessa contar histórias. Geralmente, o lugar diz-me qual é a história. Estou interessada nas histórias dos lugares e também na relação e o espaço entre as fronteiras. Fronteiras em diversas dimensões, as fronteiras de um corpo que é físico, o corpo humano, as fronteiras de um corpo que é uma paisagem, um corpo mais ligado ao Antropoceno, mas também a esse espaço em relação a um outro corpo que é o tempo. Ou seja, definir essa fronteira entre um espaço concreto com um fixo, mas também com uma dimensão sem tempo, ou seja, os vários tempos dos lugares. Interessa-me as várias histórias que esses lugares têm.

É possível dizer que há um fio condutor nas suas obras? Há um princípio, meio e fim?

Acho que sempre começo por um lugar que me é próximo, o que chamo geografia dos afetos, ou seja, uma relação de um espaço pessoal, depois que é uma expansão para um espaço do outro, mas que tem uma relação comigo. Desde o início da carreira, esse tem sido o lugar de reflexão

"(...) Em muito do meu trabalho há uma reflexão a partir de várias estratégias, como o arquivo, onde trago histórias do passado, ou a pesquisa de eventos históricos concretos, mas acaba sempre por haver uma desconstrução dessa narrativa para contar histórias omitidas"

Neste momento, é muito mais autorreferenciado que biográfico e tem a ver com uma dimensão maior que não só a pessoal, mas uma reflexão de várias narrativas, históricas e sociais, relacionadas com o lugar que ocupo como alguém da diáspora a residir em Portugal e que se movimenta entre dois espaços geográficos, Angola e Portugal. Isso tem sido uma das minhas reflexões. E tentar entender noções de tempo, e como é cíclico, como os eventos se repetem. Ou seja, podemos estar neste momento a refletir uma história de agora, só que essa história tem uma dimensão que não é só de agora. Todos os eventos que vivemos têm essa carga do passado, que temos de saber mediar, no presente, para que se consiga chegar a um espaço ou se consiga contar uma nova história ou as histórias que não foram contadas.

Em muito do meu trabalho há uma reflexão a partir de várias estratégias, como o arquivo, onde trago histórias do passado, ou a pesquisa de eventos históricos concretos, mas acaba sempre por haver uma desconstrução dessa narrativa para contar histórias omitidas. Por isso o meu interesse na fabulação crítica, ou no ficcionado, que de certa forma é um género que contém histórias além das oficiais, as escritas. As histórias que foram silenciadas.

Nasceu em Portugal, mas tem origens angolanas. Que impacto/influência é que esse contexto, também familiar, tem no seu trabalho?

O meu trabalho surgiu sempre desses lugares que ocupo, dos lugares a que pertenço e das relações pessoais e coletivas com a minha própria cultura e a minha noção de pertença, que não é fixa. É uma ambivalência de espaço, lugar, de forma de estar, de forma de pensar, de histórias, de vivências. E carregamos vários mundos. Isso é uma das reflexões fundamentais da minha obra artística. No início da carreira foi um lugar de pesquisa e de reflexão, onde eu própria entrava nas obras. Neste momento há uma extensão desse lugar pessoal para um lugar mais comum, mais coletivo, sempre com uma relação ao meu universo, porque apenas conseguimos contar a história a partir do nosso lugar.

A partir das memórias construo a narrativa do meu trabalho. A origem do trabalho é nesse lugar, [nasce] dessa geografia dos afetos, dessa relação com os outros a partir de um lugar próprio. 

"Interessa-me essa fronteira entre o visível e o invisível, o que é dito, o que não é falado, o que é visto, o que não se vê, o que se ouve e o que não se diz. São esses espaços da fronteira que me interessam. Foi essa fronteira que me definiu. Por isso, essa fronteira é a minha reflexão no trabalho"

Foi fundamental, desde o início da carreira, falar desse espaço. Neste momento é mais abrangente. Além do espaço pessoal, há uma reflexão mais coletiva de histórias, de narrativas, de políticas de espaços, numa dimensão mais histórica, social, ligada ainda a essa geografia dos afetos, mas uma geografia imaginada, mais futura, de ficção. Tanto a partir dos filmes que faço como das fotografias que acabo por encenar, porque não faço fotografia documental, tudo tem uma história, uma narrativa que é criada, mas o meu trabalho acaba por ser encenado para tentar contar as histórias que não se vêm na paisagem. O nosso olhar não vê além do visível. E interessa-me essa fronteira entre o visível e o invisível, o que é dito, o que não é falado, o que é visto, o que não se vê, o que se ouve e o que não se diz. São esses espaços da fronteira que me interessam. Foi essa fronteira que me definiu. Por isso, essa fronteira é a minha reflexão no trabalho.

idealista premeia obras de arte
Imagem da obra "South Circular" idealista

Falemos Sobre a “South Circular”. O que é que está por detrás desta obra?

A Circular do Sul aponta um caminho para o Sul e é uma circular. Aponta para um movimento cíclico que não tem princípio nem fim e acaba por falar a vários tempos de uma história de um lugar. Neste caso específico de Lisboa. Faz o mapeamento de uma cidade invisível, de uma cidade à margem da cidade oficial, do mapa oficial. Foi um projeto onde criei um mapa de uma outra cidade, a que reside nas margens, a que vai sendo apagada conforme a Lisboa bonita ou Lisboa dos postais vai crescendo, retirando os habitantes da cidade. Na verdade, ela faz uma reflexão sobre um espaço, sobre uma estrada, que é a estrada militar, uma antiga fortaleza construída no século XIX pelos franceses. Era uma fronteira que não deixava estrangeiros entrar na cidade. Na verdade, essa estrada ainda é uma fortaleza, um muro, que não deixa entrar estrangeiros na cidade. 

É um projeto desse mapeamento, dessas histórias e narrativas silenciadas, que tem por base um projeto de investigação de mais de dez anos e que, na verdade, foi uma estrada que encontrei quando cheguei a Lisboa. E durante dez anos fotografei a cidade. Uma cidade que vai desaparecendo, que vai sendo apagada, com vários bairros que já não existem e que acabo por os definir e os colocar no mapa de Lisboa como uma homenagem a quem passou por lá, a quem construiu as suas casas

"[A 'South Circular'] Faz o mapeamento de uma cidade invisível, de uma cidade à margem da cidade oficial, do mapa oficial. Foi um projeto onde criei um mapa de uma outra cidade, a que reside nas margens, a que vai sendo apagada conforme a Lisboa bonita ou Lisboa dos postais vai crescendo, retirando os habitantes da cidade"

[A “South Circular”] É um projeto de investigação e de mapeamento da cidade de Lisboa, ou seja, de uma cidade invisível. A cidade que existe, às periferias, e que está ligada aos fluxos migratórios e de diáspora. É um projeto sobre esses espaços de resistência, de afirmação, da memória desses lugares e da política desses espaços com uma dimensão histórica social das pessoas que ocupam essas outras periferias. 

Essa barreira/fronteira ainda existe em Lisboa? é possível fazer esse paralelo com a obra, onde as pessoas mais abastadas vivem em zonas centrais da cidade e as que têm menos capacidades financeiras são “arrastadas” para as periferias?

Lisboa ou a Grande Lisboa é feita de muitos contrastes. Há uma cidade central e depois há as cidades-dormitórios para quem não tem tanta possibilidade de ocupar os centros. É uma história que vem já de há algumas décadas, e as margens da fronteira dessa cidade, entre o que é o centro e a chamada periferia, ou o que é o urbano e o rural, vão também desaparecendo, porque a cidade está em crescimento. E vai havendo, também, uma pressão grande imobiliária para se destruir esses espaços, porque a cidade não tem espaço para crescer. As pessoas vão sendo arrastadas cada vez mais para fora. Já nem é na própria periferia da Grande Lisboa, mas acaba por ser uma população que está a ser expelida para além dessas margens. 

A obra “South Circular” vai estar exposta no SIL, que impacto poderá ter no público que visita a feira? 

Quando fazemos uma reflexão do urbanismo relacionado com questões sociais que têm impacto na vida da população e quando estamos num momento de vários conflitos, e onde a cidade tem uma pressão imobiliária gigantesca, ter um trabalho destes numa feira imobiliária, de certa forma, é tentar criar uma reflexão sobre essa cidade. Para que quando se pensar em questões de investimento ou da gentrificação da própria cidade, haja uma consciência para que não seja apenas de lucro, mas que se consiga ver a outra história, a história invisibilizada, para que se consigam construir cidades que possam integrar toda a população e que não se apaguem vidas, casas, espaços, futuros.

"Quando fazemos uma reflexão do urbanismo relacionado com questões sociais que têm impacto na vida da população e quando estamos num momento de vários conflitos, e onde a cidade tem uma pressão gigantesca imobiliária, ter um trabalho destes numa feira imobiliária, de certa forma, é tentar criar uma reflexão sobre essa cidade"

Há algum local/galeria/exposição com obras suas que a tenha marcado em particular? 

Esta exposição que mostro agora como parte do prémio foi mostrada no MAAT e para mim foi fundamental quando ela teve visibilidade. Geralmente, os meus trabalhos demoram tempo, não são propriamente trabalhos que faço para exposições, são reflexões sociais e políticas sobre um espaço. Tem a ver com a relação que tenho com esse espaço, as pessoas, os lugares, a história, e demora tempo. Foram dez anos para criar o projeto a Circular do Sul, e quando me convidaram para fazer uma exposição foi importante, porque o MATT é um espaço que recebe pessoas de todos os estratos sociais. Há uma outra Lisboa que está escondida, e estas exposições são fundamentais para criarem essa visibilidade desses outros espaços.

Obra de arte de Mónica de Miranda está exposta no SIL
A obra "South Circuar" está exposta no SIL, em Lisboa idealista

Além de artista é também investigadora. Os dois mundos cruzam-se?

Costumo dizer que não escolhi o que queria ser. Apenas ouvi qual era o chamamento interior e segui. A questão da investigação ou de ser artista não foram escolhas. Foram, de certa forma, expressões e manifestações próprias que fui encontrando, fui-me identificando e foram definindo o meu trabalho. Uma e outra estão ligadas. 

Vídeo, fotografia, cinema, desenho… É fácil juntar todas estas artes dentro de uma só arte?

Gosto de explorar linguagens diversas, ou seja, essa fronteira entre várias áreas. E gosto de colaborar com pessoas noutros ramos que não só artísticos. Exploro várias linguagens que respondem à reflexão do próprio trabalho. Às vezes, a imagem, a fotografia, dá essa resposta, essa procura visual e criativa ou política. Mas às vezes a imagem não consegue manifestar, ou ser uma expressão no seu absoluto dessa ideia ou desse impulso criativo. E se calhar, às vezes, temos de fechar os olhos e ouvir, e aí acabo por usar técnicas como o som, a palavra e o texto. 

"Há uma outra Lisboa que está escondida, e estas exposições são fundamentais para criarem essa visibilidade desses outros espaços"

O meu trabalho é muito colaborativo, já colaborei com músicos e atores, por isso não me prendo propriamente a uma técnica. Os conceitos e as ideias surgem. Cada vez mais estamos num mundo saturado de imagens, as imagens começam a cansar. Por isso, [o interesse] nas outras expressões de um olhar que não se vê, ou seja, de uma imagem que podemos construir de olhos fechados, como aquela que construímos a partir de um som que ouvimos. São áreas nessas fronteiras que me interessa explorar nas próprias expressões e meios artísticos.

De que forma é que as suas obras, a sua arte, podem ajudar a mudar a vida das pessoas?

No trabalho que faço há uma preocupação de mostrar uma outra história, de contar o que foi omitido da própria história. Nesse sentido, acabamos por criar espaços de reflexão que podem mudar perceções, no olhar para um espaço que antes não víamos tudo o que deveríamos saber sobre esse facto, evento, imagem, lugar, pessoa. Há um impacto de criar uma informação ou uma história que nos alerta para outras reflexões que não aquela que nos foi contada.

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