Baixos juros e oferta de crédito suportaram subida do preço da casas em Portugal, diz o economista Carlos Tavares em entrevista.
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Bolha imobiliária em Portugal
Carlos Tavares, economista, ex-ministro da Economia do Governo de Durão Barroso e ex-presidente da CMVM SEDES

O acesso à habitação em Portugal está cada vez mais difícil, sobretudo, para as famílias com salários médios e baixos. E por detrás desta dificuldade está a subida “preocupante” dos preços das casas no país nos últimos anos, a par dos elevados juros nos créditos habitação e da perda de poder de compra. Acontece que esta elevada subida dos custos da habitação tem também riscos para a estabilidade financeira e para a economia em geral: “A subida dos preços [das casas] não justificada pelos fundamentos económicos poderá corresponder a uma bolha imobiliária”, alerta o economista Carlos Tavares, ex-ministro da Economia do Governo de Durão Barroso, que coordenou recentemente um estudo sobre Habitação publicado pelo Observatório de Políticas Económicas da Sedes.

“Tenho dificuldade em admitir que não existe o risco de estarmos na presença de uma bolha imobiliária”, começa por dizer Carlos Tavares, explicando que “os preços das casas estavam, em finais de 2022, cerca de 75% acima do ‘pico’ observado quando se desencadeou a crise financeira em 2007/2008”. E esta subida foi “largamente suportada pelos efeitos da política monetária e da oferta de crédito, o que é uma característica típica das bolhas”, sublinha ainda o coordenador do estudo “Habitação e políticas de habitação para Portugal” elaborado para a Sedes e publicado em julho de 2023.

"O rendimento disponível das famílias, apesar de ter subido mais de 30% entre 2015 e 2022, ficou muito aquém da variação dos preços"

Embora a venda de casas tenha caído ao longo de 2023 devido à perda de poder de compra, rápida subida dos juros e clima de incerteza, os preços das casas continuaram a subir ao longo do ano – embora a menor ritmo – pelo que o imobiliário em Portugal continua sobrevalorizado, tal como alerta a Comissão Europeia. E, ao que tudo indica, “a oferta de habitação acessível continua a ser insuficiente em Portugal [face à procura], o que pode manter a pressão sobre os preços das casas” no médio prazo, avisa ainda o economista. Na sua perspetiva, “o cenário mais desejável seria o de uma ‘aterragem’ suave dos preços, com a sua redução gradual proporcionada por um aumento substancial da oferta de habitações para arrendamento”.

Para resolver a dificuldade do acesso à habitação que hoje assola Portugal, Carlos Tavares, também ex-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) entre 2005 e 2016 e ex-presidente do Banco Montepio entre 2018 e 2022, avalia as atuais medidas do Mais Habitação e coloca propostas alternativas. Uma delas passa por rever o modelo de remuneração dos mediadores imobiliários (que é exclusivo do lado da oferta), de forma a desincentivar a venda de casas a preços elevados. Descobre tudo nesta entrevista ao idealista/news que partilhamos em seguida.

Novos créditos habitação
Foto de RDNE Stock project no Pexels

Como avalia o acesso à habitação em Portugal nos últimos anos? O que justifica esta evolução? 

Os preços da habitação praticamente duplicaram entre 2015 e 2022, cerca do dobro da média da União Europeia. Isso tem sido uma causa decisiva da dificuldade de acesso à habitação, já que o rendimento disponível das famílias, apesar de ter subido mais de 30% no mesmo período, ficou muito aquém da variação dos preços. Também o valor médio das rendas subiu, embora muito menos, penalizando a rentabilidade do investimento em habitação e desincentivando a oferta privada para arrendamento. Mesmo assim, a queda das taxas de juro para níveis anormalmente baixos levou a que as rendas se tornassem mais onerosas do que o crédito para habitação, desincentivando também o arrendamento pelo lado da procura, impedindo que este mercado tenha o papel que é normal em outras economias. Outros fatores que contribuem para a dificuldade de acesso à habitação em Portugal incluem a insuficiência de oferta de habitação acessível, sobretudo pela via da reabilitação de imóveis – também ela prejudicada pela debilidade do mercado de arrendamento - concentração da população nas grandes áreas metropolitanas e a falta de uma gestão equilibrada do território.

A subida dos preços das casas nos últimos anos é preocupante? Quais os efeitos para as famílias e para a economia? 

Sim, a subida dos preços das casas nos últimos anos em Portugal é preocupante, tratando-se de uma das três ou quatro maiores subidas na União Europeia. Como referi, isso tem dificultado o acesso à habitação, especialmente para as famílias de baixo e médio rendimento.

O problema da acessibilidade só foi atenuado temporariamente pela queda drástica e anormal das taxas de juro dos empréstimos. Com a normalização da política monetária, o aumento da despesa com habitação, resultante do regime dominante de taxas variáveis, reflete-se já nos orçamentos familiares, reduzindo a capacidade de consumo e poupança.

Para a economia, a subida dos preços das casas e a inexistência de um mercado de arrendamento eficiente terá efeitos negativos, como a redução da mobilidade geográfica dos trabalhadores, o que pode afetar a produtividade e a competitividade das empresas. Além disso, a subida dos preços não justificada pelos fundamentos económicos poderá corresponder a uma bolha imobiliária, com os riscos conhecidos para a estabilidade financeira e para a economia em geral.

"Tenho dificuldade em admitir que não existe o risco de estarmos na presença de uma bolha imobiliária"

Qual é o risco de existir uma bolha imobiliária em Portugal? Com base em que fundamentos? 

Eu tenho dificuldade em admitir que não existe o risco de estarmos na presença de uma bolha imobiliária.  Os preços das casas estavam, em finais de 2022, cerca de 75% acima do "pico" observado quando se desencadeou a crise financeira em 2007/2008, com um aumento muito forte desde o final do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro de 2011/2014.  A subida dos preços da habitação foi largamente suportada pelos efeitos da política monetária e da oferta de crédito, o que é uma característica típica das “bolhas”. Note-se que os preços continuaram a subir em 2023, sendo o nosso mercado apontado por estudos da Comissão Europeia entre os que apresentam maior sobrevalorização no mercado imobiliário…

Como perspetiva a evolução dos preços das casas nos próximos anos no atual contexto? 

Não é fácil prever a evolução no curto/médio prazo. Por um lado, a normalização da política monetária, com a subida significativa das taxas de juro, deverá ter um efeito de contenção da subida dos preços e mesmo de alguma redução. No entanto, a oferta de habitação acessível continua a ser insuficiente em Portugal, o que pode manter a pressão sobre os preços das casas. O cenário mais desejável, em meu entender, seria o de uma “aterragem” suave dos preços, com a sua redução gradual proporcionada por um aumento substancial da oferta de habitações para arrendamento.

Preço das casas a subir em Portugal
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O que pode ser feito para melhorar o acesso à habitação (para arrendar e comprar) no nosso país, nomeadamente para os jovens e famílias de classe média?  

No curto prazo, a solução mais realista e mais rápida passa, sobretudo, pela dinamização do mercado de arrendamento, com a introdução nesse mercado de habitações que estão já disponíveis. De acordo com os Censos, o número de alojamentos é significativamente superior ao número de agregados familiares, mesmo sem considerar as segundas habitações. O que se reflete numa taxa de ocupação média que é das mais baixas da União Europeia. É claro que muitos desses alojamentos carecerão de ser reabilitados e isso implica que os respetivos proprietários sejam incentivados a fazê-lo (sobretudo que não sejam desincentivados). Isso exige um regime fiscal do arrendamento coerente e mais favorável do que o existente, processos de licenciamento simples e rápidos, eventuais comparticipações públicas nas despesas de recuperação dos imóveis amortizáveis num prazo alargado e, acima de tudo, um regime jurídico do arrendamento que seja racional, estável e previsível.

No médio/longo prazo serão relevantes adicionalmente as políticas de desenvolvimento harmonioso do território e de incentivo à mobilidade, as políticas de transportes e de reordenamento das cidades, tudo no quadro de um planeamento que evite a concentração excessiva de habitação nas grandes áreas metropolitanas e incentive o desenvolvimento de habitação em zonas menos pressionadas.

"O programa Mais Habitação contém aspetos que considero positivos por serem dirigidos à travagem da subida dos preços".

De que forma o programa Mais Habitação pode ser ajustado para melhorar a oferta de habitação em Portugal? Quais as medidas positivas e quais merecem ser reavaliadas? 

O programa Mais Habitação sofre, desde logo, de um problema conceptual. As políticas que influenciam o mercado da habitação têm uma natureza transversal, abrangendo a política orçamental (incluindo a fiscalidade), a política macroprudencial, a política de rendimentos, as políticas de regulação de mercados e, como referi, as políticas de urbanismo, transportes e desenvolvimento do território. Todas essas políticas terão de ser consistentes entre si e concorrer no sentido de garantir o adequado acesso à habitação e, ao mesmo tempo, contribuir para o equilíbrio do crescimento económico do país. Isso não pode ser conseguido com um simples conjunto de medidas pontuais e não garantidamente coerentes com os objetivos de médio prazo.

Ainda assim, o programa Mais Habitação contém aspetos que considero positivos por serem dirigidos à travagem da subida dos preços. Estão neste caso a eliminação dos “vistos gold” para investimento imobiliário, a redução de alguns benefícios fiscais injustificados e o repensar do regime do Alojamento Local, embora neste caso a solução adotada não tenha sido necessariamente a mais adequada por não dar espaço à consideração da especificidade das situações (o que só poderá ser feito no nível local). Já as medidas adotadas relativamente ao mercado de arrendamento introduzem novos níveis de complexidade e de incerteza que certamente se vão revelar contraproducentes.

Em suma, o que espero é que o tema da Habitação seja objeto de consideração transversal a todas as políticas públicas relevantes, com coerência e persistência, em lugar da filosofia dos programas específicos e das medidas pontuais, bem como das alterações frequentes de leis e regulamentos que contrariam a estabilidade de que este setor necessita criticamente.

Casas para arrendar em Portugal
Foto de Egor Kunovsky no Pexels

Que papel deve desempenhar o Estado no setor da habitação? E como se pode motivar os privados a participar na oferta de habitação acessível? 

No que diz respeito ao papel do Estado, apenas acrescentaria a necessidade de disponibilizar os imóveis que são sua propriedade e não estão devidamente utilizados (incluindo-se aqui os que pertencem à Administração Central, à Segurança Social e às autarquias locais) para que possam ser recuperados e colocados no mercado de arrendamento ou venda a preços não especulativos.

A melhor motivação para os investidores privados será um quadro legal e regulamentar racional e estável, um sistema fiscal que premeie o investimento de longo prazo e procedimentos administrativos simples e não onerosos. E, por uma vez, a assunção pelo Estado do compromisso de não fazer recair sobre os proprietários os custos da (necessária) proteção social dos arrendatários.

O que pode ser mudado no crédito habitação para ajudar as famílias a comprar casa? 

Nós já temos uma percentagem muito elevada das habitações em regime de propriedade face ao arrendamento. Tivemos também um forte aumento do crédito para habitação. E constata-se que a normalização da política monetária levou à emergência de dificuldades de pagamento dos encargos de algumas famílias. O que há para melhorar no crédito habitação é a mudança do regime predominante de taxas de juro de variáveis para fixas, eliminando os riscos que decorrem da dependência dos encargos das naturais flutuações das taxas de juro do mercado monetário.

Além disso, não faz sentido que a limitação para o acesso ao crédito em função do rendimento seja estabelecida através de uma taxa de esforço única, qualquer que seja o nível de rendimento. Ninguém terá dúvidas de que para um rendimento de, por exemplo, 10.000 euros, uma taxa de esforço de 50% pode ser comportável, mas não o será certamente para um rendimento de 1.000 euros. Finalmente, deverá ser incentivado um nível maior de poupança prévia, de modo a reduzir os encargos futuros. Não serão necessariamente as medidas mais populares, mas são as que darão mais segurança às famílias e racionalidade ao mercado.

"Período de taxas historicamente baixas constituiu uma oportunidade única (...) de mudança do paradigma do financiamento da habitação, pois teria possibilitado a adoção sistemática do regime de taxa fixa".

Como avalia as medidas aplicadas até agora para ajudar as famílias a pagar as prestações da casa (bonificação de juros, amortizações antecipadas sem comissões, etc)? Como é que o regime dos fundos de investimento de arrendamento habitacional pode ajudar as famílias a evitar situações de incumprimento? O que mais pode ser feito neste sentido? 

Antes de mais, será preciso dizer que se tivesse havido um comportamento racional de todas as partes envolvidas – financiadores e clientes – muitas situações de dificuldade teriam sido evitadas. As decisões de contração e concessão de crédito não poderiam ser tomadas com base em níveis de taxas de juro que se sabia não poderem persistir duradouramente. Ao contrário do que por vezes se tem ouvido, não estamos perante as taxas mais altas conhecidas no passado. Em outubro de 2008, a Euribor a 12 meses atingiu cerca de 5,5%, vinda de cerca de 2% três anos antes (está agora em cerca de 3,5%...). Aliás, o período de taxas historicamente baixas constituiu uma oportunidade única – de facto, perdida - de mudança do paradigma do financiamento da habitação, pois teria possibilitado a adoção sistemática do regime de taxa fixa, incluindo a reconversão de créditos em vigor.

A situação de 2007/2008 levou à solução dos Fundos de Investimento para Arrendamento Habitacional, que permitia às famílias em dificuldade simultaneamente manter as suas habitações e dinamizar o mercado do arrendamento, com incentivos fiscais apropriados. Julgo que esta foi uma solução racional, que tive pena de não ver retomada agora. Quanto às soluções concretas adotadas, o que se deseja é a distinção entre o que são apoios de natureza social indispensáveis e a atribuição generalizada aos contribuintes da responsabilidade por comportamentos imprudentes, seja do lado da procura, seja do lado da oferta de crédito.

Casas acessíveis para comprar
Foto de RDNE Stock project no Pexels

O que deve ser mudado na mediação imobiliária para melhorar o seu funcionamento? 

Deve ser tratada a questão do conflito de interesses inerente ao modelo de remuneração dos mediadores imobiliários, que atualmente são exclusivamente remunerados pelo lado da oferta. Isso pode levar a um incentivo para transações com preços mais elevados, o que pode ser prejudicial para os compradores. Uma revisão do modelo de remuneração pode ser necessária para mitigar esse conflito de interesses. Por outro lado, deve haver um incentivo claro para que os mediadores imobiliários promovam ativamente soluções de arrendamento para os seus clientes, em vez de se concentrarem apenas na mediação de compra e venda de imóveis.

Defendo ainda que haja efetiva regulação e supervisão da atividade dos mediadores imobiliários, de molde a garantir: primeiro, que os mediadores fornecem informações completas e precisas aos seus clientes e atuam de acordo com padrões éticos elevados; segundo, que são estabelecidos requisitos de formação e qualificação para os mediadores imobiliários, com obrigatoriedade de atualização periódica, assegurando que possuam o conhecimento e as competências necessárias para oferecer um serviço de qualidade aos clientes.

"É preciso criar um forte incentivo fiscal à fixação de pessoas em regiões menos desenvolvidas"

Também dizem que as políticas de descentralização e de desenvolvimento territorial terão um “contributo poderoso” para melhorar a situação da habitação no país. Quais são os principais incentivos à mobilidade que propõem?

No estudo publicado pela SEDES propõe-se a adoção de políticas de descentralização e desenvolvimento territorial mais harmonioso, de forma a criar condições de qualidade de vida e trabalho em regiões fora da faixa litoral, que sejam comparáveis às das grandes zonas urbanas litorais. Isso pode ser alcançado através do investimento em infraestruturas e serviços públicos de qualidade. Outra via que parece adequada é a criação de um forte incentivo fiscal à fixação de pessoas em regiões menos desenvolvidas, o que constituiria também um incentivo à deslocalização de empresas. O que deverá ser complementado por adequadas políticas de transportes, garantindo a acessibilidade e a conectividade entre as diferentes regiões do país, de forma a facilitar a deslocação de pessoas e bens. Uma vez mais, será necessária uma apropriada conjugação de políticas que visem promover um desenvolvimento mais equilibrado do país, reduzindo a pressão sobre as grandes zonas urbanas e criando oportunidades de habitação e emprego em regiões menos desenvolvidas.

"A estabilidade legislativa e fiscal será, sem dúvida, uma condição crítica para transmitir confiança aos proprietários e investidores e, assim, aumentar a oferta de casas para comprar e arrendar em todo o país"

Como é que se consegue aumentar a oferta de casas para comprar e arrendar em todo o país? Ter estabilidade legislativa e fiscal que transmita confiança aos proprietários e investidores é um primeiro passo?  

A estabilidade legislativa e fiscal será, sem dúvida, uma condição crítica para transmitir confiança aos proprietários e investidores e, assim, aumentar a oferta de casas para comprar e arrendar em todo o país. A perda de confiança, em especial no mercado do arrendamento, tem sido afetada há longo tempo e sucessivamente agravada por medidas pontuais que vão sendo tomadas ao sabor das circunstâncias. Por isso, será necessário que as políticas adotadas sejam racionais e coerentes com os objetivos de desenvolvimento do mercado habitacional e sejam acompanhadas de um compromisso credível da sua permanência estável num horizonte de médio e longo prazo. Porque essa é a característica que se deseja para o próprio investimento em habitação, que deve ter um horizonte temporal longo e não a busca de ganhos rápidos e especulativos. É crucial que esta filosofia seja inequivocamente incentivada pelas leis aplicáveis.

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