Filipa Roseta está ao leme da vereação da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa (CML) desde outubro de 2021, ocupando um cargo que já teve nas mãos da sua mãe, Helena Roseta, entre 2007 e 2013. É na emblemática Sala do Arquivo, um espaço repleto de história – é da autoria de Domingos Parente, o arquiteto lisboeta dos Paços do Concelho de 1867 –, que Filipa Roseta fala ao idealista/news sobre os planos que a autarquia tem em vista para aumentar a oferta de casas na capital. “Lisboa tem potencial para fazer 7.000 casas em terrenos seus, municipais, que não tem de comprar a ninguém”, revela, salientando que “não se percebe como é que há terrenos parados quando as pessoas estão a precisar de habitação”.
Entre os temas abordados nesta entrevista estão a Carta Municipal da Habitação (CMH) de Lisboa – “É a política de habitação no concelho de Lisboa para os próximos dez anos” e está em causa um investimento de “800 milhões de euros até 2028” –, a importância de haver consensos na autarquia tendo em vista parcerias a estabelecer com privados de forma a trazer mais casas ao mercado, o desafio de não haver mão de obra na construção e a importância de apostar nas cooperativas.
Sobre esta solução, a arquiteta recorda que [as cooperativas] deixaram de existir “durante 20 anos” e que tem dificuldade em perceber porquê. “Funcionou muito bem, fizeram-se bairros inteiros assim nos anos 1980, 1990: Telheiras e Expo foram feitos com base neste tipo de lógica, em que a CML cede [terrenos] com direito de superfície em 90 anos e as pessoas pagam a construção. Estamos a tentar reavivar um modelo que já construiu bairros inteiros em Lisboa”, explica.
 
Que balanço faz destes anos enquanto vereadora da Habitação da CML?
O balanço destes dois anos começa com a boa notícia, por assim dizer, do nosso trabalho: 2023 foi o melhor ano da década em todos os indicadores. O melhor ano na entrega de chaves, o melhor na quantidade de famílias alcançadas com os nossos apoios, o melhor no planeamento dos próximos anos. Ainda há muito por fazer, mas estamos a fazer um caminho francamente positivo.
“Ainda há muito por fazer”, diz. Refere-se também à aprovação da CMH? Em que ponto é que está?
A CMH foi o que fizemos logo desde o princípio. Durante um ano houve uma grande discussão pública em torno da carta, que foi aprovada em 2023. A versão para ir a discussão pública esteve aberta dois meses e acabou dia 1 de fevereiro. Tivemos 85 participações, algumas de entidades e outras de pessoas individuais. Estamos a fazer o relatório ponderado das 85 participações e queremos levá-la assim que possível a reunião de câmara, e espero que seja aprovada.
"Abril seria um mês bonito para aprovar a Carta Municipal de Habitação de Lisboa, é uma boa celebração dos 50 anos [do 25 de Abril de 1974]"
A CMH, na verdade, é a política de habitação no concelho de Lisboa para os próximos dez anos e tem estratégias do que queremos fazer em três áreas concretas. Uma é aumentar a oferta de habitação, o choque-oferta de habitação no mercado. Temos estratégias, cronogramas e calendários para os próximos dez anos neste campo. A segunda é aumentar os programas para ajudar as pessoas no acesso à casa. Às vezes não é preciso dar casa à pessoa, posso ajudar a pagar a renda. E também aqui demos passos significativos, chegámos a mais de 1.000 famílias, o maior apoio de sempre, e estamos com um programa aberto de apoio ao pagamento de renda para chegar a 2.000 famílias, é um apoio sem precedentes para conseguir apoiar as famílias dentro da sua casa. Terceira linha, produzir mais cidade. Não basta produzir habitação, é preciso que toda a cidade tenha a mesma qualidade, porque há zonas que não são tão apelativas e precisam ainda de algum investimento. Nestes três eixos estamos a fazer mais do que foi feito na última década.
Quando é que haverá novidades sobre a CMH?
Gostávamos de até abril conseguir pôr a carta em reunião de câmara. Depois também terá de ser aprovada por todos os membros do Executivo. Abril seria um mês bonito para aprovar a CMH, é uma boa celebração dos 50 anos [do 25 de Abril de 1974].
Em termos de investimento, são cerca de 800 milhões de euros, certo?
O que nos estamos a comprometer é 800 milhões de euros de investimento até 2028. Destes, 500 milhões é do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e os outros é orçamento municipal. Portanto, o PRR apoia com 500 milhões. É uma proporção bastante grande, mas também coloca a responsabilidade no orçamento municipal. A ideia é haver um compromisso e gostávamos muito que fosse o mais consensual possível para garantir que se faz nos próximos dez anos isto. Nos próximos dez anos vamo-nos comprometer a fazer 800 milhões de investimento em habitação. Isto era muito interessante, porque a cidade tem ainda muita propriedade por desenvolver. O que a carta identifica é que Lisboa tem potencial para fazer 7.000 casas em terrenos seus, municipais, que não tem de comprar a ninguém. O que estamos a desenhar é uma estratégia ou uma linha de como é que isto vai chegar ao mercado, às pessoas, como é que vamos conseguir produzir a preços acessíveis estas 7.000 habitações.
"O que a Carta Municipal de Habitação identifica é que Lisboa tem potencial para fazer 7.000 casas em terrenos seus, municipais, que não tem de comprar a ninguém. O que estamos a desenhar é uma estratégia ou uma linha de como é que isto vai chegar ao mercado, às pessoas, como é que vamos conseguir produzir a preços acessíveis estas 7.000 habitações"
Se conseguirmos um consenso vai ser muito mais fácil e, com alguma estabilidade, aumentar significativamente o número de casas acessíveis em Lisboa. Estamos a contar que se consiga passar a carta com um consenso equivalente àquele que houve nos anos 1990, quando os quatro partidos, CDS, PSD, PS e PCP, acordaram que era preciso acabar com as barracas em Lisboa. Acordaram sem hesitar. E por isso, durante dez anos, conseguimos tirar 130.000 pessoas de barracas. Vamos tentar chegar a esse espírito que existiu nos anos 1990 com o que foi o Programa Especial de Realojamento. Estamos a tentar chegar a esse espírito agora com outra missão nacional, que é produzir habitação acessível e conseguir, principalmente nos terrenos que são da câmara e não de privados, que sejam colocados ao serviço das pessoas em vez de estarem parados. Ninguém percebe como é que estes terrenos estão parados quando as pessoas estão a precisar de habitação.
 Falou em 7.000 habitações. O património imobiliário municipal está, então, perfeitamente identificado.
Temos perfeitamente identificado o potencial de fazer 7.000 habitações naquilo que são terrenos de propriedade municipal. Destas, cerca de 3.000 estão de alguma maneira em curso. Contávamos que até 2026 se fizessem 1.200, sendo que mil e tal estão em fase de obra. Falta cerca de 4.000 que ainda estamos a tentar imaginar como é que se consegue. Isto é a parte mais importante e daí as parcerias serem tão importantes. Porque os 800 milhões de euros que estou a falar e que é o universo de investimento da CMH vai chegar para as cerca de 3.000 casas, não vai chegar às 7.000, porque vamos ter de reabilitar bairros além de produzir habitação nova. Portanto, há uma fatia, que é o potencial de construir 4.000 habitações em terreno municipal, que queríamos fazer chegar rapidamente às pessoas. E por isso é que começámos a imaginar os programas de parcerias, porque aí a câmara só tem de dar o terreno e os promotores pagam a construção.
Fale-nos um pouco sobre estas parcerias.
Temos dois tipos de parcerias e não são parcerias público-privadas, são parcerias com promotores privados. Temos dois tipos nos terrenos que identificámos. Umas é com promotores, que são os terrenos maiores, que precisam mais de construção, como em Benfica (300 fogos) e no Parque das Nações (200). E aí é preciso um promotor com capacidade de desenvolver/construir o projeto que depois vai arrendar com renda acessível para as pessoas. A câmara dá o terreno a 90 anos, o promotor paga a construção e as rendas têm de ficar abaixo dos valores de mercado.
Outras parcerias são as cooperativas, que também gostamos bastante, que são os nossos lotes pequeninos, que têm 20/30 casas e são edifícios mais pequenos. As famílias organizam-se, formam a cooperativa e a câmara faz a mesma coisa que faz com os promotores, cede o terreno a 90 anos, as pessoas pagam a construção e no fundo ficam com a casa para a vida pelo valor da construção, que é muito abaixo do de mercado. Na primeira cooperativa que já temos desenhada, com projeto feito, é qualquer coisa [o preço/custo] como 150.000 euros um T1 novo com estacionamento em Lisboa. Na rua à frente desse edifício que estamos a desenhar está à venda um T1 idêntico por mais de 400.000 euros. Portanto, é um valor muito abaixo do mercado.
O caminho das parcerias é este. Como é que está em termos políticos? No caso das cooperativas passou, sendo que apesar de tudo temos de fazer alterações, porque a seleção das cooperativas era para ser feita por sorteio e ficou definido em reunião de câmara, apesar de ter passado, que será feita por critérios de avaliação. O que está a trazer alguma dificuldade, porque nos parece difícil avaliar as cooperativas, são sempre muito equivalentes. Por isso é que preferíamos o sorteio e não os critérios de avaliação. Estamos com esta alteração, a ver como é que vamos resolver isto até ao verão, mas à partida está encaminhado para passar e já temos cinco projetos desta natureza: dois bastante avançados, sendo que um já está pronto, é só conseguimos o consenso político para passar isto na reunião de câmara e já pode sair, que é o do Lumiar.
"Como é que está em termos políticos [a situação das parcerias com privados]? No caso das cooperativas passou, sendo que apesar de tudo temos de fazer alterações, porque a seleção das cooperativas era para ser feita por sorteio e ficou definido em reunião de câmara, apesar de ter passado, que será feita por critérios de avaliação. (...) No caso das parcerias [com promotores imobiliários] houve um impasse, não conseguimos chegar a um consenso. Vamos tentar ver se conseguimos um diálogo construtivo"
No caso das parcerias [com promotores imobiliários] houve um impasse, não conseguimos chegar a um consenso. Vamos tentar ver se conseguimos um diálogo construtivo. O que aconteceu? Na nossa proposta, fizemos uma avaliação das parcerias que tinham sido feitas desde 2016, que produziram zero casas. Nenhuma funcionou porque não eram atrativas para os promotores. No fundo, o promotor vai ficar com o terreno, constrói, paga a construção e tem rendas acessíveis, abaixo do mercado, mas têm de lhe pagar o investimento. Tem de ser uma parceria, ou seja, nós temos de ganhar e eles também, senão não vai funcionar. O que é que dissemos: nós queremos rendas acessíveis, 20% abaixo do mercado, no máximo, e fazemos um leilão, estávamos prontos para avançar assim. Mas foi chumbado pela oposição, porque achavam que as rendas, apesar de serem 20% abaixo do mercado, eram altas. Portanto, parou.
[E] nós pagamos a diferença entre aquilo que as famílias podem pagar e o preço dos promotores, ou seja, a câmara está a entrar [neste modelo de negócio] para permitir que o promotor ganhe dinheiro e que as famílias só paguem aquilo que podem. A câmara, no fundo, é o elo que resolve essa diferença, porque aquilo que as famílias podem pagar, que é 30% dos rendimentos, se calhar não é 20% abaixo do mercado. Era este o nosso formato, para ver se funcionava, em que o promotor tinha o mínimo de lucro que lhe permitisse viabilizar a operação e as famílias tinham o que querem, que é pagar um terço do seu rendimento para a casa. Pensámos que tínhamos uma solução inteligente que satisfazia promotores e famílias, mas não passou. Vamos avançar com as cooperativas e continuar a dialogar com a oposição para ver se conseguimos convencê-los de alguma maneira ou com algum modelo.
 Do lado da promoção imobiliária privada há esta abertura?
Os promotores estão interessados em fazer estas parcerias, a câmara está interessada em que sejam feitas e é preciso encontrar um número com o qual toda a gente fique confortável. Seja qual for, não vai fugir muito disto, porque parece-nos realmente ser a solução. Percebo que a oposição queira rendas mais baixas, mas também tem de perceber que os promotores não vão fazer isto se não tiverem alguma rentabilidade. Ou continua sem acontecer, o que é uma pena, estes terrenos estão parados há décadas, ou a fazer-se tem de haver um click, um salto em frente, uma maneira de pensar diferente. Ainda espero que venham de encontro a esta nossa ideia e vamos continuar a insistir e a trabalhar nela.
"Os promotores estão interessados em fazer estas parcerias, a câmara está interessada em que sejam feitas (...). Mas tem de se praticar valores que os promotores vejam como interessantes. Qualquer pessoa percebe que se não for um valor que o promotor queira, não vai acontecer. E é isto que se tem verificado desde 2016, 2017"
Não nos esqueçamos que a câmara não se está a demitir de construir, estamos a fazer 3.000 casas. A questão é que podíamos ter um choque de oferta em dez anos de 7.000 habitações, é um número significativo. Para se ter uma ideia, a câmara, que é o maior senhorio do país, tem 23.000 habitações.
Estamos a falar na aposta, então, no Build to Rent, que já é uma realidade em outros países?
É uma aposta que Madrid [capital espanhola], por exemplo, acabou de fazer. Vendeu [a câmara] terrenos a promotores para construírem mantendo a renda acessível, é normal que assim seja. Mas tem de se praticar valores que os promotores vejam como interessantes. Qualquer pessoa percebe que se não for um valor que o promotor queira, não vai acontecer. E é isto que se tem verificado desde 2016, 2017. Temos de tirar esta ideia do papel e construí-la. É olhar à volta e ver o que se está a fazer.
Um dos terrenos que está no mercado há anos é o do Vale de Santo António…
Também estava parado, mas o loteamento está a andar tendo havido uma alteração. São 2.400 habitações só ali, num sítio central da cidade. É preciso termos esta noção: ninguém percebe que aquele terreno esteja parado tanto tempo. Temos de conseguir arranjar maneira de fazer as coisas, não ter só ideias que não vão para a frente, porque esta oferta de habitação é necessária, as pessoas precisam dela e é um recurso que está a fazer falta à cidade. Pode a câmara estar ali com um recurso parado a insistir em coisas que toda a gente sabe que não vão acontecer? Essa é a pergunta que temos de fazer. Este é um bom exemplo, mas há outros. Temos outros terrenos em situações que são interessantes e que temos de continuar a produzir. Temos o Casal do Pinto [nas Olaias], por exemplo, que é um plano de pormenor que esteve parado desde 1998 e que agora vamos pôr a andar, são 200 e tal habitações.
"Numa altura em que toda a gente vê que a habitação em Lisboa é um problema é preciso haver habitação acessível. A única entidade que a pode fazer tem a obrigação de o fazer. Somos nós, de facto, a entidade que está melhor posicionada para o fazer com a propriedade que temos. Estamos numa boa posição para conseguir criar um mercado de habitação acessível"
Numa altura em que toda a gente vê que a habitação em Lisboa é um problema é preciso haver habitação acessível. A única entidade que a pode fazer tem a obrigação de o fazer. Somos nós, de facto, a entidade que está melhor posicionada para o fazer com a propriedade que temos. Estamos numa boa posição para conseguir criar um mercado de habitação acessível. Mercados de habitação acessível, ligeiramente abaixo do mercado, existem em todo o lado, em Londres, na Alemanha… não é novidade. Mas em Portugal não há, por razões históricas nunca existiu. Temos agora uma oportunidade para o fazer com os terrenos da CML e queremos fazer. A pergunta é se “querem fazer connosco ou não”.
Ainda sobre as cooperativas, disse que já há cinco projetos. Esta é uma das grandes apostas da CML para aumentar a oferta de casas?
Tendencialmente será para quem vai comprar primeira habitação na cidade, esse é o princípio. Mas ainda temos esta questão dos critérios que ficou por apurar e, portanto, isso ainda está aberto. Gostávamos de conseguir fechar até ao verão a primeira [cooperativa]. Temos de trabalhar com consensos, mas por um lado esperamos que ao construí-los fiquem coisas definidas, que já não se mexam durante muito tempo, porque na verdade as cooperativas é algo que existia há 20 anos. Deixou de existir durante 20 anos e não sei porquê, tenho dificuldade em perceber, porque não havia razão para isso. Funcionou muito bem, fizeram-se bairros inteiros assim nos anos 1980, 1990: Telheiras e Expo foram feitos com base neste tipo de lógica, em que a CML cede [terrenos] com direito de superfície em 90 anos e as pessoas pagam a construção. Estamos a tentar reavivar um modelo que já construiu bairros inteiros em Lisboa. Vamos ver.
"As cooperativas é algo que existia há 20 anos. Deixou de existir e não sei porquê, tenho dificuldade em perceber, porque não havia razão para isso. Funcionou muito bem, fizeram-se bairros inteiros assim nos anos 1980, 1990: Telheiras e Expo foram feitos com base neste tipo de lógica, em que a CML cede [terrenos] com direito de superfície em 90 anos e as pessoas pagam a construção. Estamos a tentar reavivar um modelo que já construiu bairros inteiros em Lisboa"
É um modelo que o próprio Governo pretende implementar com o programa Mais Habitação. Mas são modelos diferentes, certo?
Há as cooperativas de propriedade individual e as de propriedade coletiva. Nós admitimos os dois modelos e o Governo só admite o de propriedade coletiva, ou seja, a pessoa não está a construir a sua própria casa, está numa cooperativa a pagar uma quota, é mais um formato quase de renda e menos de propriedade individual. Nós admitimos os dois modelos. Significa que a pessoa pode vir com o objetivo de ter o fogo e comprar o direito de superfície para o mesmo, ou seja, haver uma família afeta a um fogo. Achamos que é importante ter este modelo também. O Governo excluiu-o.
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