
São vários os países que estão a arregaçar as mangas e a criar estratégias para atenuar os efeitos da inflação e da guerra da Ucrânia nas suas economias. E uma medida colocada em cima da mesa em Espanha passa por criar um Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas, afetando quem tem um património superior a 3 milhões de euros.
O anúncio do aumento de carga fiscal no país vizinho já está a criar alarido entre os espanhóis ricos, que começam a procurar destinos alternativos para transferirem os seus capitais, para evitar pagar mais impostos. E muitos milionários já estão de olhos postos em Portugal, que tem um regime fiscal "vantajoso" para estrangeiros. O idealista/news foi investigar o que pode mudar em Espanha com a aprovação deste imposto sobre grandes fortunas e porque é que Portugal se pode tornar no "el dorado fiscal" dos espanhóis ricos.
Sempre que se divulgam intenções políticas de aumentar a carga fiscal em Espanha - como está a acontecer agora, por parte do Governo socialista de Pedro Sánchez -, os cidadãos espanhóis tendem a pedir ajuda na análise fiscal entre os regimes de Portugal e Espanha. O "número de consultas aumenta exponencialmente", aponta ao idealista/news Rafaela Beire Cardoso, advogada na Belzuz Abogados, dando nota de que isto acontece, porque além da proximidade entre os dois países a vários níveis, Portugal tem um dos regimes fiscais “mais vantajosos” para não residentes, o Regime dos Residentes Não Habituais (RNH), acrescenta.
“Desde a sua implementação, em 2009, que este regime [RNH] tem levado a que muitos estrangeiros decidam passar a residir em Portugal”, Rafaela Beire Cardoso, advogada na Belzuz Abogados
É precisamente isto que está a acontecer neste momento. Este movimento por parte dos espanhóis ricos começou a sentir-se depois da ministra das Finanças espanhola, Maria Jesús Montero, ter anunciado, no final de setembro, que está em cima da mesa a aplicação do Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas pelo período de dois anos (2023 e 2024).
"O Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas parece provocar um êxodo dos rendimentos mais elevados para outros destinos, como Portugal, o que pode representar uma forte ameaça devido à proximidade entre os dois países”, confirma Isca Noguera, diretora de Wealth Planning do banco privado Beka Finance: Até porque, como a “fiscalidade portuguesa se tem mostrado muito competitiva, o grupo de antigos residentes em Espanha duplicou nos últimos anos”, sustenta a especialista ao idealista/news.
Se a medida acabar por avançar e se se verificar um movimento de capitais de Espanha para Portugal, “a economia nacional irá sair claramente beneficiada, porquanto criou este regime especificamente com os objetivos de dinamizar a economia nacional e captar investimento. Assim, com mais profissionais não residentes, ou beneficiários de pensões interessados em regimes fiscais mais favoráveis, Portugal verá o número de beneficiários deste regime aumentar, fomentando um novo espírito de competitividade da economia portuguesa, e estimulando a economia nacional e o tecido empresarial português“, analisa a advogada Rafaela Beire Cardoso.

Famílias da América latina ponderam deixar negócios em Espanha
Além da possível fuga de capitais dos milionários espanhóis para Portugal, há outras consequências à vista: se este Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas for avante poderá assistir-se à perda de incentivo para atrair novos estrangeiros ricos para Espanha.
Os pedidos de esclarecimento das potenciais mudanças fiscais em Espanha “estão a ser recebidas por uma infinidade de consultores fiscais, advogados e bancos privados”, explica Isca Noguera, adiantando que “muitos latino-americanos, mexicanos e venezuelanos, e outros cidadãos de outros países, já estão a considerar deixar de ser impostos residentes em Espanha e a ponderar vender os seus imóveis no país, ou levar os ativos financeiros do país para outros territórios mais favoráveis”, como é o caso de Portugal.
A decisão de mudar de vida e transferir a riqueza destas famílias da América latina poderá mesmo causar danos maiores à economia espanhola, uma vez que estes investidores compram casas (para segunda habitação, mas não só), consomem acima da média, criam empresas e geram empregos. ”Os latinos investem muito em imóveis na capital [Madrid], moram em Espanha por um tempo, levam os seus filhos a estudar nas universidades e a fazer mestrados. Mas se colocarmos agora um imposto de 3,5% sobre o património do mexicano que veio para Madrid, provavelmente não será mais um país competitivo” ao investimento, realça José María Mingot, diretor do departamento de assessoria jurídica e tributária da Tressis.
É por tudo isto que já há especialistas a estudar “a possibilidade de a perda em termos de potencial de investimento e criação de riqueza ser superior ao benefício fiscal do novo Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas”, destaca a especialista do Beka Finance, Isca Noguera.

Quais são as diferenças entre o regime fiscal espanhol e português para as grandes fortunas?
A economia ficou agitada em Espanha depois da ministra das Finanças ter anunciado um conjunto de medidas tributárias a implementar já em 2023. E uma das primeiras alterações fiscais contempladas pelo Governo socialista de Sánchez trata-se do Imposto de Solidariedade às Grandes Fortunas, que já havia sido colocado em cima da mesa no passado. Esta é uma penalização que cairá sobre os contribuintes com património líquido superior a 3 milhões de euros, estando prevista a aplicação de uma taxa progressiva da seguinte forma:
- Taxa de 1,7% para património líquido superior a 3 milhões de euros e até 5 milhões de euros;
- Taxa de 2,1% para património líquido superior a 5 milhões de euros e até 10 milhões de euros;
- Taxa marginal de 3,5% para património líquido superior a 10 milhões de euros.
De acordo com o plano tornado público por María Jesús Montero, ao ser aplicada, esta será uma medida fiscal temporária, com efeito para os exercícios de 2023 e 2024, não afetando, portanto, o atual ano fiscal de 2022. E, segundo as contas do Executivo espanhol, este imposto solidário irá abranger 0,1% dos contribuintes com grandes fortunas (cerca de 23 mil pessoas).
Como funciona o regime fiscal português para estrangeiros?
Em Portugal, tudo é diferente. Desde logo, deste lado da fronteira não há um imposto global sobre o património líquido, havendo, sim, impostos sobre o património imobiliário e impostos sobre o rendimento. “A este facto, acrescem os benefícios para estrangeiros que Portugal oferece, em particular, no Regime dos Residentes Não Habituais (RNH)” criado em 2009, explica a advogada da Belzuz ao idealista/News. Este regime no território luso tem a particularidade de permitir:
- tributar a taxa fixa de 20% os rendimentos da categoria A (trabalho dependente) e da categoria B (trabalho independente), decorrentes de uma atividade de elevado valor acrescentado;
- tributar a taxa de 10% os rendimentos da categoria H (pensões), independentemente do valor dos rendimentos auferidos.

Além disso, “prevê ainda a possibilidade de isenção de tributação para rendimentos de fonte estrangeira desde que verificadas certas condições”, esclarece ainda Rafaela Beire Cardoso, frisando que “os contribuintes que adquiram o estatuto de RNH serão tributados como tal por um período de 10 anos”, sendo que depois serão tributados de acordo com as regras gerais do Código do IRS.
Mas, então, quais são as condições para um residente não habitual beneficiar de isenção impostos sobre os rendimentos gerados no estrangeiro? A advogada da Belzuz resume que um contribuinte deve:
- Ser considerado residente fiscal em Portugal: ou permanecendo mais de 183 dias no país, seguidos ou interpolados, num determinado ano, ou dispondo em Portugal de uma propriedade (arrendada ou adquirida), que faça supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;
- Não pode ter considerado residente fiscal em Portugal nos últimos cinco anos;
- Inscrição nas Finanças como residente não habitual: deve ser solicitada a inscrição até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente no território português.
Os contribuintes que adquiram o estatuto de RNH podem beneficiar deste regime especial até um período máximo de 10 anos. E se, por questões pessoais ou profissionais, tiverem de regressar ao país de origem e só beneficiarem do regime por 3 ou 4 anos, os contribuintes “não perderão o benefício atribuído nos anos anteriores em Portugal”, realça a especialista legal.
“O regime RNH é muito vantajoso e, por este motivo, nos últimos anos, fez com que muitos cidadãos estrangeiros deslocalizassem a sua residência fiscal para Portugal, por forma a aproveitar um regime mais favorável”, conclui Rafaela Beire Cardoso. Antes de o fazer, a advogada aconselha "o recurso a obtenção de aconselhamento jurídico prévio, relativamente às normas fiscais aplicáveis e ao cumprimento das obrigações declarativas em Portugal".

Imposto sobre grandes fortunas em Espanha: uma dupla tributação?
Em Espanha, além da discussão politica e na sociedade, têm sido várias as personalidades do setor financeiro e fiscal a pronunciarem-se sobre novo Imposto de Solidariedade sobre Grande Fortunas. E há quem diga que a nova taxa se vem sobrepor ao Imposto sobre o Património já existente em determinadas comunidades autónomas do país, gerando uma dupla tributação.
A presidente da Asociación Española de Asesores Fiscales (Aedaf) é uma destas vozes de alerta: “A partir do momento em que [o imposto sobre grandes fortunas] se sobrepõe ao Imposto sobre o Património, parece-nos mais um movimento político, de subtração das comunidades autónomas dos seus poderes. Portanto, acreditamos que em algum momento a sua inconstitucionalidade será declarada, uma vez que a base tributária é a mesma". Na opinião de Stella Raventós Calvo, "trata-se de uma medida que foi tomada, sobretudo, para impedir que as comunidades autónomas façam uso dos seus poderes” e, neste sentido, a responsável diz, em declarações ao idealista/news, que se prevê uma avalanche de reclamações.
Com vista a evitar um caso de dupla tributação, a equipa de Pedro Sánchez já admitiu que o Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas possa vir a ser deduzido nas comunidades autónomas onde o Imposto sobre o Património ainda é aplicável. “Isso implica que naquelas comunidades autónomas onde existem descontos integrais no Imposto sobre o Património – tal como acontece em Madrid e Andaluzia onde há uma bonificação de 100% da taxa para os seus moradores – não se vai pagar Imposto sobre Património, mas sim o imposto sobre grandes fortunas”, explica a PwC numa análise fiscal enviada ao idealista/news.
Portanto, a taxa sobre grandes fortunas paga nas comunidades autónomas, onde o Imposto sobre o Património ainda está ativo, deverá ser deduzida no IRS. E, como tudo indica que esta medida terá carácter transitório, sendo aplicável aos exercícios de 2023 e 2024, os acertos com o fisco deverão ser feitos nas declarações de IRS de 2024 e 2025.
Desde a PwC, admite-se que há “muitas questões que estão a ser levantadas sobre o desenvolvimento do conteúdo específico” deste novo imposto sobre fortunas. E embora não haja ainda novidades sobre esta matéria, a equipa de especialistas da consultora internacional sugere que há pontos que os contribuintes devem ter em atenção sobre:
- os critérios para avaliação de bens e direitos a declarar;
- a manutenção da atual isenção de residência habitual;
- a isenção por detenção de participações em empresas familiares;
- a forma de aplicação do que é conhecido como o limite conjunto de renda patrimonial.
Sobre o desenho deste novo imposto sobre grandes fortunas em Espanha, Stella Raventós Calvo, presidente da Aedaf, deixa ainda um conselho: "Os impostos precisam ser elaborados com muito cuidado. São legítimos, mas também são um ataque à propriedade privada. É verdade que todos nós temos de apoiar as despesas públicas, mas isso deve ser feito com o máximo cuidado, de forma tecnicamente correta e bem coordenada. E não é isso que está a acontecer”, argumenta.

Impostos sobre riqueza: há mais exemplos na Europa
O imposto sobre grandes fortunas deverá ser uma novidade em Espanha e está a gerar muitas dúvidas e polémica. Mas modelos semelhantes já existem em, pelo menos, dois países da Europa, tal como explica Isca Noguera, da Beka Finance:
- Noruega: inclui uma taxa de 0,95% para os bens superiores a 180.000 euros e uma taxa superior de 1,1% para aqueles com mais de 2,1 milhões de euros;
- Suíça: taxas de imposto que variam de 0,001% a 0,525% consoante cada patamar de rendimentos - tal como se prevê fazer em Espanha.
À exceção destes dois países, “o que existe nos outros países europeus são impostos diferentes sobre a riqueza, mesmo que seja apenas de um certo tipo”, recorda a especialista do banco privado. “Em França, por exemplo, esse imposto foi substituído em 2018 por um que tributa apenas a fortuna imobiliária. Quem tem menos de 800.000 euros em bens imóveis não paga o imposto, além de que funciona progressivamente, com taxas que variam de 0,5% a 1,5% para as pessoas com mais de 10 milhões em ativos imobiliários. Em Itália cobra-se um imposto sobre ativos financeiros e ativos imobiliários, mas apenas se estiverem fora do país. Já na Holanda, este imposto foi incluído na taxa sobre ganhos de capital, que incide sobre investimentos, património e propriedade, mas sua legalidade está a ser questionada”, resume a especialista financeira.

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