
A ligação de Carlos Cercadillo ao imobiliário português é antiga. O investidor espanhol chegou ao país há 20 anos, através da empresa Hercesa, que vendeu em 2006. Nesse ano, criou a Cerquia e mais tarde, em 2018, a CleverRed, bem como a Clever Real, spin off, gestora que teve então como parceiro a Acciona, uma empresa de referência espanhola ligada à construção, energia e imobiliário, com o objetivo de expandir a sua presença em Portugal no setor residencial e assumir-se como um promotor de referência no país.
Agora, com o país mergulhado numa crise habitacional, Carlos Cercadillo faz-se valer da experiência adquirida ao longo dos anos no setor do imobiliário e mete o dedo em algumas feridas, como por exemplo a incerteza gerada com os processos de licenciamento. “O que está a acontecer é que há um bloqueio no urbanismo”, denuncia em entrevista ao idealista/news, avisando que “os investidores imobiliários já estão a questionar os investimentos em Portugal”.
Segundo o responsável, os anúncios do Governo socialista relacionados com o setor imobiliário podem bloquear um mercado que estava a alcançar um nivel de especialização alto e a atingir uma velocidade de cruzeiro, consolidando postos de trabalho e criação de riqueza. "Custou muito criar em Portugal um mercado profissionalizado que pode agora, em parte, diluir-se, nomeadamente devido às incertezas e às noticias do Executivo", sustenta.
Portugal teve, nos últimos anos, de superar várias crises, como o "subprime", a “entrada” da Troika e a pandemia da Covid-19, debatendo-se agora com um novo desafio, que se enquadra no contexto macroeconómico internacional, agudizado pela guerra: aumento da inflação e subida a pique das taxas de juro. A verdade é que, no que diz respeito ao setor imobiliário, nos últimos quatro, cinco anos, reconhece o empresário espanhol, tudo mudou. Portugal entrou no radar dos investidores e passou a ser um destino atrativo. Ainda é, mas cada vez menos, lamenta Cercadillo, considerando que o país “está a perder o comboio”, por várias circunstâncias.
"A pessoa está num terraço em Lisboa e o que vê? Ou melhor, o que não vê? Gruas! Há dois, três anos Lisboa era um jardim de gruas"
“Desenvolvemos [com a Cerquia] vários projetos residenciais em Lisboa, numa altura em que ninguém fazia nada, porque havia uma crise brutal. Quase não havia gruas na cidade. Agora [o cenário é idêntico] a pessoa está num terraço em Lisboa e o que vê? Ou melhor, o que não vê? Gruas! Há dois, três anos Lisboa era um jardim de gruas. O que está a acontecer na cidade são obras públicas. A iniciativa privada está parada, bloqueada”, aponta.
Incerteza nos licenciamentos sem luz ao fundo do túnel
A incerteza e os atrasos existentes relacionados com os processos de licenciamento na capital, um problema recorrentemente reiterado por vários players do setor, parecem estar a deixar marcas, impedindo também a que se assista ao tão reclamado aumento da oferta.
Segundo Carlos Cercadillo, “a falta de capacidade para dar resposta a processos em fila não poderá ser ultrapassada por uma máquina, por uma plataforma eletrónica”. “Tem de haver pessoas suficientes para analisar todos os processos”, salienta.

Madrid versus Lisboa: as diferenças
O investidor considera que há, neste caso concreto, “bastantes diferenças” entre Portugal e Espanha: “Quando aqui muda a cor política mudam também muitos técnicos. Como é possível em Madrid as licenças sairem, em média, em 12 meses e em Lisboa… não existir sequer uma média. A diferença está na profissionalização e na externalização do processo. Em Lisboa, até que não se 'standarize', a tramitação de todas as licenças não vai acelerar, criando um equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, com a correção dos preços desejada".
"Como é possível em Madrid as licenças sairem, em média, em 12 meses e em Lisboa… não existir sequer uma média"
Fazendo-se valer da experiência de mais de duas décadas a operar no setor imobiliário residencial em Portugal, o empresário espanhol alerta que “o país precisa é de promotores que façam ‘fábricas de casas’”, tendo em vista a “renovação urgente” do parque habitacional. Uma necessidade que esbarra com os entraves existentes: “Por muito que o Governo faça leis [simplex do licenciamento previsto no Mais Habitação] e queira melhorar a situação, se não houver uma ‘sintonia’ com as entidades locais, se não houver um ‘match’ nessa associação, não vai haver desenvolvimento. Não acredito que as coisas possam mudar só com estas novas leis relacionadas com os licenciamentos”.
Impostos elevados encarecem construção de casas
Também a elevada carga fiscal praticada em Portugal na construção nova é um entrave à chegada de casas ao mercado nacional. Quando questionado sobre este assunto, Carlos Cercadillo pega numa folha e numa caneta e faz as contas, por alto, de quanto pode custar desenvolver um projeto imobiliário residencial em Portugal, tendo em conta os vários impostos existentes, como por exemplo o IVA, o IMT e Imposto de Selo.
“Se se quer beneficiar o português, para que compre uma casa, há que eliminar o IVA. Ou que se faça IVA dedutível, como é no resto da Europa. Isso sim era uma medida. Além do IVA na construção, que em Portugal não é dedutível, no final o comprador tem ainda de suportar o IMT e o Imposto de Selo", exemplifica.
Sublinhando que os atrasos nos processos de licenciamento têm demasiados encargos com impostos para os promotores imobiliários, o responsável volta a dar o exemplo de Espanha para mostrar como comprar uma casa nova em Portugal é mais caro: “Sou natural de Guadalajara, a cerca de 50 km de Madrid, e uma casa aí custa menos 150.000 euros que uma idêntica em Loures (arredores de Lisboa). Além de os impostos serem menores, os processos entram e são rapidamente analisados".
"O IVA baixar para 6% no centro para que se reabilite a cidade é positivo, claro, mas é contraditório, porque o comprador final do centro de Lisboa não é o português, é quem mais pode pagar. A quem tem de se baixar o IVA é a quem quer construir casas novas, nomeadamente nos arredores de Lisboa. E esses pagam mais impostos"
Ainda no que diz respeito à carga fiscal praticada neste segmento em Portugal, Carlos Cercadillo deixa outro aviso: “O IVA baixar para 6% no centro para que se reabilite a cidade é positivo, claro, mas é contraditório, porque o comprador final do centro de Lisboa não é o português, é quem mais pode pagar. A quem tem de se baixar o IVA é a quem quer construir casas novas, nomeadamente nos arredores de Lisboa. E esses pagam mais impostos. Ou seja, são cobrados mais impostos a quem – em última instância aos consumidores finais – precisa de crédito habitação. Quem tem mais possibilidades, quem compra casas reabilitadas no centro de Lisboa, é ‘premiado’ com IVA a 6%, e ainda tem isenção de IMI”.

AL e vistos gold? “Não há um meio termo em Lisboa”
A polémica em torno do travão ao Alojamento Local (AL) e do fim dos vistos gold e do regime dos Residentes Não Habituais (RNH) tem feito correr muita tinta nos últimos tempos. O investidor não tem dúvidas de que “os maiores prejudicados” neste momento são as pessoas de classe média, que não conseguem comprar uma casa. Partilha da opinião, nesse sentido, de que é crucial aumentar a oferta de casas acessíveis e lamenta o facto de não haver “um meio termo” na capital, uma espécie de combinação “entre cidadãos e turistas”.
"[Fim dos vistos gold e dos RNH] é um dos maiores erros que Portugal pode cometer. Quem está a ganhar com isso é a Grécia. Espanha e Itália também. Não é verdade que as casas ficaram mais caras por causa dos vistos gold ou dos RNH"
Sobre o fim da concessão de vistos gold e dos RNH, considera tratar-se de “um dos maiores erros que Portugal pode cometer”. “Quem está a ganhar com isso é a Grécia. Espanha e Itália também. Não é verdade que as casas ficaram mais caras por causa dos vistos gold ou dos RNH. É, mais uma vez, a questão da oferta e da procura. Parece-me um pouco estranho não potenciar esse mercado. O inteligente seria conviver com o mercado dos golden visa e RNH e ter um mercado adaptado às condições dos clientes nacionais”, analisa.
Investidores em fuga? Um caso real…
Instabilidade legislativa, nomeadamente com o Programa do Governo Mais Habitação, atrasos nos processos de licenciamento, carga fiscal elevada, fim dos vistos gold e dos RNH. A estes fatores soma-se a atual conjuntura económica, marcada por inflação alta e taxas de juro a subir. Estará Portugal ainda no radar dos investidores? O empresário espanhol mostra-se cauteloso e dá um exemplo que diz conhecer de perto.
“Este é um caso real. Uma empresa global, uma multinacional, queria instalar-se em Lisboa nos últimos seis meses, mas já não está a pensar nisso, porque não sabe onde colocar os profissionais que iriam chegar à cidade. Não há casas para essas pessoas. O problema não são os 15.000 m2 de escritórios que a empresa precisa, mas sim para onde vai viver a grande quantidade de pessoas que iam deslocar. Há grandes empresas que não vêm para Lisboa por causa disto”, revela.
Segundo Carlos Cercadillo, Portugal conseguiu, nos últimos três, quatro anos, “ter a atenção internacional e atrair capital, ou seja, mudar a sua visibilidade internacional”. “Nenhum fundo imobiliário queria entrar no país, e há quatro anos começaram a olhar para o país, eu próprio trouxe alguns desses fundos. Portugal começou a ser internacionalmente bem visto e a ter um grupo de promotores profissionalizados”, elogia.
"Uma empresa global, uma multinacional, queria instalar-se em Lisboa nos últimos seis meses, mas já não está a pensar nisso, porque não sabe onde colocar os profissionais que iriam chegar à cidade. Não há casas para essas pessoas"
Paralelamente, conta, a banca nacional atravessa um bom momento, está à espera de poder financiar habitação, está disponível para investir. “Porque é que isso não acontece? O que está a faltar a Lisboa para liderar uma transformação e competir com as outras capitais europeias?", questiona.

“Portugal está a perder o comboio”
Pelo caminho, reforça, alguns investidores começam a sair de cena: “Aguentam três, quatro anos, não mais, e vão-se embora. Por isso digo que Portugal está a perder o comboio de posicionar-se na Europa”.
"Os investidores aguentam três, quatro anos, não mais, e vão-se embora. Por isso digo que Portugal está a perder o comboio de posicionar-se na Europa"
“Parece que voltámos atrás. Manter as estruturas profissionalizadas tem um custo e é um esforço muito grande. Os promotores que se vão manter aguentam-se porque já investiram. Os investidores já estão a deixar de vir para Portugal e os estrangeiros que pensam em investir é na costa, em zonas mais isoladas, para projetos de residências seniores, por exemplo, ou seja, produtos imobiliários não residenciais”, conclui.
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