Especialistas ouvidos pelo idealista/news dizem que há impacto “residual” dos RNH na habitação. Fim do regime não resolve crise.
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RNH tem impacto nos preços das casas?
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A decisão já está tomada: o regime dos residentes não habituais (RNH) vai mesmo acabar em Portugal a partir de 2024, tendo sido criado um novo incentivo fiscal para a investigação científica e inovação nos mesmos moldes, mas “mais restrito”. O Governo decidiu, portanto, não prolongar “uma medida de injustiça fiscal, que já não se justifica e que é uma forma enviesada de inflacionar o mercado de habitação, que atingiu preços insustentáveis”, tal como argumentou António Costa. Mas, afinal, quem são estes RNH e como é que vivem em Portugal? Como é que a sua presença afeta o mercado da habitação? Na ausência de estudos divulgados sobre a relação entre os RNH e a subida dos preços das casas, o idealista/news questionou vários especialistas para descobrir se, afinal, há ou não uma ligação. Admitem que há um impacto “residual” dos RNH na compra de casa e que, por isso, o fim deste estatuto não vai resolver o problema de acesso à habitação em Portugal.

Residentes não habituais em Portugal: quem são e de onde vêm?

Desde logo, importa saber quem são os residentes não habituais que vivem em Portugal, beneficiando a redução do IRS durante 10 anos – e que mesmo que o estatuto termine em 2024 vão continuar a usufruir deste benefício fiscal, porque não está previsto que tenha efeitos retroativos. Sabemos que foram contabilizados 74.258 residentes em Portugal em 2022 ao abrigo deste regime, de acordo com os dados mais recentes do Tribunal de Contas. E ainda que o número de RNH triplicou face a 2018.

Olhando para estes dados e tendo em conta a sua experiência profissional, os especialistas não têm dúvidas que o RNH tem tido uma adesão consistente e significativa desde 2009, ano em que foi criado. “O regime do RNH em Portugal tem sido objeto de considerável interesse nos últimos anos e, sem dúvida, uma das melhores ferramentas de captação de investimento estrangeiro”, resume Rafaela Beire Cardoso, advogada associada e diretora do departamento fiscal da Belzuz Advogados. E acrescenta ainda que “nos últimos anos a adesão ao regime RNH aumentou significativamente”, devido, em parte, “ao crescente conhecimento sobre os seus benefícios, mas também ao clima político e económico que se vive nos países de origem”.

“O estatuto do RNH é o regime fiscal mais bem-sucedido de sempre”
Diogo Capela, advogado, sócio/partner da Lamares, Capela & Associados.

Mas qual é o perfil destes residentes não habituais? Até agora, não há dados oficiais disponíveis sobre o perfil da procura ao abrigo do regime. O idealista/news pediu esses mesmos dados ao ministério das Finanças, mas não foram enviados até à data de publicação deste artigo. Baseando-se nas suas experiências profissionais, os especialistas auscultados dizem que o perfil dos RNH é diverso, desde reformados a investidores, tendo geralmente maior poder de compra.

“Tanto falamos de reformados ou estrangeiros em pré-reforma, como falamos de nómadas digitais, famílias inteiras que optam por viver no nosso país, altos quadros deslocados. Tipicamente, são pessoas com um nível de rendimentos mais elevado que a média do cidadão português, logo com maior poder de compra”, comenta Gonçalo Nascimento Rodrigues, coordenador da pós-graduação em Real Estate Investments do ISCTE Executive Education.

Reformados estrangeiros em Portugal
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“O perfil das pessoas que obtém o RNH são pessoas que pretendem morar em Portugal, seja porque aqui contam viver a sua reforma, como aqueles que têm empresas em Portugal, ou aqui trabalham de forma subordinada ou independente”, partilha Diogo Capela, advogado e sócio/partner da Lamares, Capela & Associados. Trata-se, portanto, de "cidadãos portugueses emigrados e europeus que escolheram vir exercer as suas profissões ou disfrutar da sua reforma em Portugal, não esquecendo que é um ponto fundamental de atração de talento nacional e internacional", indica Patrícia Barão, Head of Residential da JLL.

Portanto, a adesão ao RNH foi, sobretudo, sentida por parte de “reformados, empresários, profissionais liberais e investidores que procuram vantagens fiscais e ao mesmo tempo um país tranquilo, com bom clima, elevada qualidade de vida e baixa taxa de criminalidade”, resume Rafaela Beire Cardoso, da Belzuz Advogados.

E Roman Carel, sócio fundador da Athena Advisers, destaca o facto do regime RNH ter atraído “muitos profissionais altamente qualificados e valorizados. O que quer dizer que houve muito investimento de pessoas empreendedoras, empresários, pessoas ativas que se mudaram para Portugal e iniciaram novos negócios, abriram escritórios, empregaram pessoas e consumiram bens e serviços. E isto teve um impacto muito significativo na nossa economia”, salienta.

Também na PwC notaram a procura pelo regime RNH por parte de "trabalhadores em atividades consideradas como de elevado valor acrescentado" e ainda de nómadas digitais, sobretudo durante e após a pandemia. Luís Filipe Sousa, tax director na PwC Portugal, destaca ainda a procura de "pessoas com elevado património e rendimento, que tipicamente auferem diferentes tipos de rendimentos, nomeadamente passivos (dividendos, juros, mais-valias, rendimentos prediais ou pensões)".

Pela experiência de Francisco Castro Guedes, coordenador no Departamento de Fiscal da SRS, o regime RNH é “especialmente procurado” por dois tipos de perfis de trabalhadores:

  • ‘high-net-worth individuals’: que procuram Portugal para viver porque aqui encontram uma melhor qualidade de vida (incluindo segurança e ótimo clima);
  • profissionais que exercem atividades de elevado valor acrescentado, designadamente altos quadros de empresas e profissionais de ‘tech’. “A afluência de uma camada mais jovem neste setor das tecnologias foi especialmente notória nestes últimos anos, face à implementação e normalização do trabalho remoto”, acrescenta.

Por tudo isto, Micaela Monteiro Lopes, assistente convidada do Instituto Superior de Contabilidade Administração de Lisboa (ISCAL) e doutoranda em Direito, admite que "este regime reforça a imagem de Portugal como um país aberto ao investimento internacional e à integração de estrangeiros".

Compra de casas por estrangeiros em Portugal
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De que países vêm os RNH que vivem em Portugal?

Os RNH vêm, sobretudo, de países como o Reino Unido, Espanha, França, Itália, EUA, Brasil ou China, dizem desde a Belzuz Advogados. E na Athena Advisers partilham que receberam pessoas que vieram do Brasil, da África do Sul, da Turquia, de França e da Suécia, entre outros países, “que chegaram cá e criaram restaurantes, hotéis, empresas de tecnologia e tantos outros negócios”, refere Roman Carel.

“As pessoas com estatuto de RNH são provenientes, na sua maioria, de França e também de alguns países nórdicos, nomeadamente da Suécia. Tal coincidiu com o aumento de impostos sobre os maiores rendimentos nestes países, o que motivou a procura de Portugal como destino de residência, ainda que não habitual”, explica Miguel Lacerda, Lisbon Residential Director na Savills.

Desde a De Brito Properties – mediadora imobiliária que acompanha o investimento estrangeiro no mercado imobiliário português há dez anos – dizem que “de todos os europeus, os franceses foram os que mais se demonstraram atraídos pelo estatuto RNH”.  E foi precisamente entre 2016 e 2020 que sentiram o “boom” de franceses reformados e casais com filhos a virem para Portugal beneficiar deste regime. Já em 2020, a mudança da tributação das reformas de 0% para 10% arrefeceu a procura de reformados. Mas, ainda assim, “entre 2020 e 2022 tivemos muito mais pedidos de outros europeus para vir para Portugal aproveitando o RNH, sendo que muitos deles eram jovens nómadas digitais”, diz ao idealista/news César de Brito, gerente da empresa.

Residentes não habituais em Portugal
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RNH a viver em Portugal: impacto na compra de casas é “residual”

Uma das justificações que António Costa deu para acabar com o estatuto de RNH - e criar um novo incentivo fiscal destinado aos profissionais de investigação científica e inovação “mais restrito”, segundo avaliam os especialistas ouvidos pelo idealista/news -, passou precisamente pelo facto de a chegada destes estrangeiros estar a inflacionar o mercado da habitação em Portugal. Mas será mesmo assim?

É certo que estas famílias vindas do estrangeiro precisam de ter uma casa para viver, seja arrendada ou comprada. Mas a maioria dos especialistas acredita que o número de habitações adquiridas por estas famílias será "residual" e até, nalguns casos, a preços muito superiores aos que os portugueses podem pagar.

Embora o estatuto dos RNH não esteja diretamente associado à aquisição de habitação - como está, por exemplo, o golden visa que chegou ao fim com o Mais Habitação -, a economista Vera Gouveia Barros admite que "este regime implica que estas pessoas se tornem residentes cá, sendo natural que se constituam como um acréscimo de procura de habitação (seja por aquisição, seja no arrendamento). E uma vez que é um regime pensado para atrair pessoas com rendimentos elevados, também é natural que essas pessoas tenham maior capacidade de pagar e concorram com quem é residente habitual”, acrescenta.

Também Gonçalo Nascimento Rodrigues assume que “estes residentes adquirem ou arrendam casas em Portugal”. Mas, embora admita que “pode haver uma relação entre o RNH e o mercado da habitação”, sublinha que não há dados concretos nem estudos que o comprovem. Fazendo uma estimativa rápida, o especialista em finanças no ramo imobiliário diz que entre 2018 e 2022 os residentes não habituais compraram, no máximo, 8% das 625.960 casas vendidas nesse período, tendo em conta que chegaram ao país 50 mil novos RNH durante esses quatro anos.

“Como na realidade esse impacto foi bastante mais reduzido – dado que a totalidade destes residentes  não adquiriu casa – não é possível afirmar que o regime alimentou uma subida de preços de casas e a crescente escassez de oferta, nem que o seu fim ajudará a resolver o problema do acesso à habitação”, conclui o professor do ISCTE.

A visão de César Brito é semelhante: como “nem todos os RNH compraram casa em Portugal”, a sua quota de mercado é “residual” sobre o volume nacional de vendas. Além disso, destaca que “estes clientes compraram um certo tipo de imóvel, muitas vezes de luxo – nesta perspetiva, teremos de admitir que esta quota de mercado teria uma maior importância". Um estudo da NHR Global Association em 2022 verificou que cada RNH gastou, em média, cerca de um milhão de euros na compra de propriedades em Portugal, cita Roman Carel. Assim, "com o fim do RNH, os promotores de luxo portugueses vão sentir mais dificuldade a vender os seus imóveis”, alerta o responsável pela De Brito Properties.

“Se alguma contribuição teve [o RNH] para o aumento do preço das casas foi residual e muito localizado no centro das cidades, e em alguns bairros, em unidades residenciais de maior dimensão para acolher as famílias que elegiam Portugal para fixar residência”, refere ainda o sócio fundador da Athena Advisers. E no mesmo sentido, Francisco Castro Guedes, da SRS, diz que em causa está “um número reduzido de casas” e “a circunscrição deste tema aos centros urbanos”, o que “demonstra claramente que a medida não resolverá o tema de acesso à habitação”.

Há também quem admita uma ligação entre o RNH e a subida dos preços das casas. "O regime teve um papel destacado no aumento da procura imobiliária, resultando na valorização dos imóveis. A correlação entre o RNH e a dificuldade de acesso à habitação para os cidadãos nacionais pode ser interpretada como um conflito entre políticas de atração de investimento e o bem-estar dos residentes", diz Micaela Monteiro Lopes. E acredita ainda que "uma eventual descontinuação deste regime poderá causar oscilações no mercado imobiliário, possivelmente resultando, a longo prazo, numa estabilização – ou até numa redução – dos preços dos imóveis" para arrendar ou comprar, ainda que este reflexo "nunca será imediato, nem com a rapidez que é pretendida".

No extremo oposto, há especialistas que negam que os RNH influenciem a subida dos preços das casas, por pressão na procura estrangeira. Miguel Lacerda, da Savills, diz que “o investimento dos RNH não está de todo relacionado com a inflação do mercado da habitação”, porque “este tipo de investidor particular pode apenas arrendar um espaço, não necessita de efetivar uma compra”. Também Patrícia Barão, da JLL, assume que “a alegação de que o RRNH inflaciona o mercado da habitação não faz sentido", até porque "o programa atraía principalmente estrangeiros que compravam propriedades de alto valor, muitas vezes em áreas onde os portugueses não tinham grande interesse".

O que é certo é não há estudos que permitem concluir que a presença dos RNH tem impacto negativo sobre os preços das casas, tal como alega o primeiro ministro. Por isso mesmo, Luís Filipe Sousa, da PwC, entende que "seria desejável que os estudos que permitem tirar essa conclusão fossem divulgados".

Residentes não habituais a comprar casa
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Fim dos RNH não vai melhorar acesso à habitação em Portugal

Embora assumam que os residentes não habituais comprem ou arrendem casas para viver no nosso país, vários especialistas ouvidos pelo idealista/news avisam que acabar com este regime não vai ajudar a resolver o problema de acesso à habitação em Portugal. Isto porque a questão central está no lado da escassa oferta de casas e não na procura de estrangeiros por casas para viver, argumentam.

“O Governo quer convencer os portugueses que o problema da habitação em Portugal está no lado da procura e não no lado da oferta (…) e que os estrangeiros são os causadores do problema da habitação” por terem maior poder de compra para adquirir casa no país, interpreta o advogado Diogo Capela.

Mas o mercado da habitação em Portugal não está inflacionado por culpa do RNH, como alega António Costa, dizem em coro vários especialistas, até porque o impacto na compra de casas é “residual”. “O primeiro-ministro pode acabar com o RNH e com outras medidas de atratividade, mas tem de ser respeitoso pelos que ajudaram o país quando foi preciso. Deve ser justo e honesto, e admitir que o problema da inflação dos preços da habitação é um problema global, já que a subida dos preços das casas verifica-se em vários países europeus e do mundo”, argumenta César Brito, da De Brito Properties.

“O fim do RNH não vai trazer mais casas para a classe média e baixa portuguesa”,César de Brito, gerente da De Brito Properties.

“A subida de preços em Portugal foi generalizada”, concorda Roman Carel, da Athena Advisers, dando nota que esta é “uma questão macroeconómica e não uma questão estrita e diretamente relacionada com o RNH”. Até porque a subida dos preços foi impulsionada pelas baixas taxas de juro e abundância de liquidez no mercado. “Se olharmos para as tendências, esse movimento generalizou-se em toda a Europa, nomeadamente após o Brexit, quando o capital a nível europeu começou a ficar inflacionado”, exemplifica.

O próprio governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, admitiu que não está “completamente” convencido de que programas como o dos RNH seja o problema do mercado habitacional, ressalvando que o fim do mesmo é uma "questão política". 

Já a assistente convidada do ISCAL admite que os RNH tiveram um "papel destacado" na procura de casas, o que influenciou a subida de preços e agravou as dificuldades de acesso à habitação pelos portugueses. Neste sentido, Micaela Monteiro Lopes vê, a nível político, o fim do regime dos RNH como "um gesto em prol dos cidadãos portugueses, em particular daqueles que não possuem habitação própria ou dos titulares de rendimentos mais modestos, que enfrentam sérias dificuldades no acesso ao mercado habitacional, resultado da inflação imobiliária que atualmente enfrentamos".

Estrangeiros a viver em Portugal
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A verdade é que a dificuldade de acesso à habitação no país prende-se com o desequilíbrio presente entre a escassa oferta para uma alta procura. "Para cada casa nova construída, temos procura para nove", exemplifica Patrícia Barão, da JLL. "O grande problema da habitação em Portugal está relacionado com a falta de oferta de produto e com uma construção lenta e mais cara”, aponta ainda Miguel Lacerda, da Savills.

Além disso, há outra questão que há muito se discute: os atrasos nos licenciamentos. “Não há novos edifícios a chegarem ao mercado e os novos projetos arrastam-se anos e anos nas câmaras municipais para obterem licenciamento. E aqui batemos noutro grande problema que está a inflacionar o imobiliário em Portugal: a lentidão da administração. E isso não está a ser resolvido e ninguém tem interesse em resolvê-lo porque não dá votos”, refere ainda o sócio fundador da Athena Advisers. 

Portanto, a solução para melhorar a acessibilidade da habitação em Portugal passaria por aumentar a oferta de casas. “Para isso é preciso incentivar o investimento para arrendamento privado com vantagens fiscais como existem em França, mas até agora o Governo não teve essa visão”, aponta o responsável pela De Brito Properties.

“O programa RNH não é a causa da crise da habitação. A verdadeira solução para o problema da habitação passaria por medidas que estimulassem a oferta de habitação, como a reabilitação de propriedades abandonadas e a criação de incentivos fiscais para promotores imobiliários", remata Patrícia Barão, da JLL.

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