A pandemia fechou a vida dentro de 4 paredes, fazendo eclodir casos de 'burnout' parental. Especialistas analisam fenómeno.
Comentários: 0
A fatura do confinamento: famílias à beira de um ataque de nervos e profissionais afetados
Freepik

Um ano de pandemia e tudo mudou. A economia, o trabalho, as casas, as famílias, os hábitos – o mundo, a vida. Com o desconfinamento faseado em marcha em Portugal, e o plano de vacinação em curso, começa a haver luz ao fundo do túnel, mas o isolamento social está a deixar marcas e a passar uma fatura “pesada”, cujos efeitos a médio e longo prazo estão ainda por conhecer. Mas uma coisa já é certa, a Covid-19, ao fechar o trabalho e as escolas dentro de quatro paredes, deixou muitos pais e filhos à beira de um ataque de nervos, e profissionais afetados, devido ao difícil equilíbrio entre o mundo laboral e a vida pessoal.

E neste cenário de exaustão, desmotivação e desgaste, agudizado pelas incertezas e falta de perspetiva, há mesmo quem entre no chamado 'burnout' parental. A mistura de papéis afeta, mais ou menos, todas as famílias, nas suas diversas formas e estruturas, segundo explicam especialistas ao idealista/news, e acaba por ter efeitos sistémicos para a sociedade e para a economia. Por outro lado, impacta também nas tendências de procura de habitação, impulsionando o desejo de ter casas com mais espaço interior e exterior, e  fomentando a realização de obras e projetos de decoração.

Ao longo deste período de "convivência" da sociedade com o novo coronavírus, a casa tornou-se o epicentro da vida e o grande refúgio, servindo de sala de aulas, escritório e local de lazer de muitas famílias, com a criação de novas necessidades e a introdução de diferentes hábitos, rotinas, formas de conviver e de estar, trazendo com isso muitos desafios, nomeadamente nas relações entre pais e filhos e nos comportamentos pessoais e dinâmicas familiares. E, em muitos lares, começaram a surgir sintomas de que algo não está a correr tão bem, ou como era antes do eclodir da pandemia.

Cristina Nogueira da Fonseca, que é psicóloga, professora e uma “happyologist”, fundadora da Happy Town, esclarece que o 'burnout' parental é manifestado “pela perda de eficiência nas tarefas parentais e nos deveres emocionais enquanto pai ou mãe, a construção de um sentimento geral de saturação, cansaço crónico, exaustão, um descanso/sono pobre”, agudizado por esta fase de confinamento e isolamento social, em que “há claramente um desequilíbrio grande entre as exigências colocadas aos pais e os recursos que estes dispõem para conseguir coexistir com ele”.

As consequências, diz a consultora especializada em felicidade, employee experience e happiness management, são “imediatas”, ao nível da perceção de enfraquecimento da relação parental, quebra de vínculo emocional, ausência de manifestações de empatia, cumplicidade e proximidade entre os elementos da famílias, e “aumento da crença que se é incapaz de gerir os desafios, que acaba também por impactar a auto-estima e auto confiança”.

A longo prazo, e já depois do desconfinamento, podemos assistir a um “desinteresse da vida familiar, um distanciamento do próprio casal, um distanciamento dos filhos, porque a pessoa distancia-se e depois, num estado limite, surgem ideias mais pesadas como ‘eu quero deixar isto tudo’, ‘eu vou-me embora porque estou farto disto’”, como explica, por outro lado, Magda Gomes Dias, fundadora da Escola da Parentalidade e Educação Positivas. O rosto por detrás da página Mum’s the boss aconselha todas as pessoas a não desvalorizar o tema e a procurarem ajuda.

Casas sem espaço e tempo para respirar

No ano passado, durante o período de confinamento, uma equipa de investigadoras das Universidades de Coimbra (UC) e do Porto (UP), no âmbito de um projeto internacional integrado num consórcio de 40 países, procurou avaliar o impacto da crise pandémica e do confinamento em Portugal na qualidade da parentalidade e das relações com os filhos.

Dos 488 pais e mães que participaram no estudo (a maioria mães, 81%), através de um questionário online, 19% dos pais e 31% das mães afirmaram que o confinamento à habitação e o isolamento social causaram um aumento dos sintomas de 'burnout' parental, “com impacto negativo nos seus comportamentos em relação aos filhos, relatando mais práticas educativas negativas, como, por exemplo, dar palmadas e dizer coisas aos filhos que depois se arrependem, e de desligamento – por exemplo, não dar atenção e prestar cuidados quando acham que o deviam fazer”.

A fatura do confinamento: famílias à beira de um ataque de nervos e profissionais afetados
Photo by Charles Deluvio on Unsplash

Ser mais jovem, ter mais anos de escolaridade e viver numa grande cidade, assim como viver numa casa ou apartamento sem espaço exterior onde se possa brincar ou jogar com os filhos ou ter problemas de saúde mental, no presente ou no passado, são fatores de risco para o agravamento do burnout parental, indicava o estudo, liderado por Maria Filomena Gaspar, docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (FPCEUC), investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES), juntamente com Anne Marie Fontaine, professora emérita da Universidade do Porto.

Creches, jardins-de-infância e escolas, e ainda o teletrabalho, juntaram-se, sem zonas de fronteira, por causa da pandemia. Em casas que, na maioria das vezes, não estavam preparadas para os impactos desta mudança de vida e de hábitos forçados. E não é só porque faltavam metros quadrados lá dentro, mas sobretudo porque faltavam zonas de lazer lá fora, para relaxar e respirar. Com o confinamento, as famílias ficaram mais conscientes dos seus espaços e da importância e qualidade dos mesmos, e decidiram investir mais tempo neles – desde pequenas a grandes obras, remodelações ou só mudanças na decoração. As tendências de procura de casa também têm vindo a sofrer alterações: agora querem-se casas maiores e com mais espaços ao ar livre, como varandas ou terraços, e vistas desafogadas, que permitam uma melhor conciliação.

“Ter de estar fechado em casa muda muito e muda tudo. Sabemos que pais com mais filhos em casa, com crianças menores de 4 anos ou com crianças que necessitem de mais atenção física, mental ou comportamental, estão mais expostos a situações de 'burnout' parental, assim como famílias que vivam sem acesso a espaços públicos, jardins, onde possam espairecer, brincar”, sublinha Cristina Nogueira da Fonseca.

Trabalhar em casa e a pressão de ser super-mãe e super-pai

Nas famílias, muitas mães e pais viram-se confrontados com uma nova forma de desempenhar as funções profissionais: o trabalho remoto. Tiveram de converter a sala ou a cozinha num escritório, reinventando formas para continuarem a trabalhar e, simultaneamente, atenderem às necessidades dos seus filhos -  que também passaram a ter aulas à distância - enquanto tentam dar conta das tarefas domésticas e cuidados pessoais. Haverá profissões mais flexíveis que outras, mas todas exigem organização e ginástica diárias, que, sem planeamento e força anímica, podem começar a falhar.

Esta semana, o comissário europeu para o Emprego, Nicolas Schmit, veio mesmo dizer que a grande mudança ocorrida, no último ano, com a pandemia, é que passámos a viver no trabalho em vez de trabalhar em casa, destacando, porém, que sem possibilidade do teletrabalho “a crise económica teria sido muito pior”.

“Não há escape. Trazemos a profissão e a escola para dentro de casa, e tudo se passa dentro de casa. E aquilo que eu sinto é que no primeiro confinamento ainda houve algum entusiasmo em relação à questão, neste momento toda a gente está muito sobrecarregada”, comenta Magda Gomes Dias. A especialista considera que o tipo de profissões que os pais têm também pode influenciar uma situação de 'burnout', nomedamente “quando há uma pressão muito grande e não podem falhar”. “E depois as aulas param, e é preciso fazer o almoço, e as crianças têm de voltar à escola depois disso, há um desgaste nisto tudo”, relembra.

Não há escape. Trazemos a profissão e a escola para dentro de casa, e tudo se passa dentro de casa. E aquilo que eu sinto é que no primeiro confinamento ainda houve algum entusiasmo em relação à questão, neste momento toda a gente está muito sobrecarregada
Magda Gomes Dias

“Seria muito importante que as empresas, e as pessoas que lidam com os seus colaboradores que estão em casa pudessem criar algum tipo de flexibilidade. Ou seja, agora o filho vai ter um teste, ou vai ter uma atividade qualquer, e em vez de uma hora para almoço, vamos precisar de duas horas, depois compensa-se no final do dia, por exemplo”, comenta ainda.

O desafio de continuar a render no trabalho

E todas estas vivências intercruzadas e intensas, tendencialmente, podem ter efeitos no desempenho profissional. Cristina Nogueira da Fonseca acredita que “dificilmente uma mãe ou um pai em situação de 'burnout' parental será um profissional com uma performance e produtividade extraordinária”. Mas também diz que não é impossível continuar a responder de forma adequada na esfera laboral. “Se o meu trabalho for algo que eu gosto, onde me sinto realizada e reconhecida, é possível que consiga bons resultados, é possível que aloque mais tempo a uma atividade em que sinto que estou a ter sucesso. O ser humano precisa de emoções positivas para sobreviver com saúde emocional e portanto irá buscar onde conseguir, quer seja no trabalho, quer seja na comida, recordo que esta é uma fase de predisposição a aumento de vícios, e para muitos o trabalho é um deles”, sublinha.

A especialista concorda que flexibilidade no trabalho é muito importante e defende que, sempre que possível, “o trabalho deve ser o que uma pessoa faz e não o horário durante o qual o faz”. Isto é, sempre que possível, “o colaborador pai ou mãe devia conseguir escolher a melhor hora para fazer o seu trabalho e tudo o que possa ser feito a qualquer hora deve ficar ao cuidado do colaborador encontrar o momento em que estará mais focado e produtivo”.

Creio que esta é a altura para trabalharmos a bondade e a empatia entre as pessoas. Empresas vs Colaboradores, Pais vs Filhos, estamos todos a viver uma situação única e por ser única não tínhamos na nossa bolsa de recursos estratégias para a gerir, estamos a aprender e todos a sofrer com esta privação de liberdade, tempo, pessoas, afetos.
Cristina Nogueira da Fonseca

Nesse sentido, e numa altura em que as empresas começam a preparar os seus planos de regresso aos escritórios, ainda que sem data à vista, volta a colocar-se a tónica na importância do equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. A tendência de futuro, segundo têm defendido as consultoras e especialistas no tema, é a de que cada vez mais empresas adotem modelos híbridos, assentes num modelo de teletrabalho e funcionamento das equipas nos espaços das empresas, que agora têm de ser mais colaborativos e dinâmicos, e que permitam aos trabalhadores uma gestão mais equilibrada de todas as esferas da sua vida.

“Creio que esta é a altura para trabalharmos a bondade e a empatia entre as pessoas. Empresas vs Colaboradores, Pais vs Filhos, estamos todos a viver uma situação única e por ser única não tínhamos na nossa bolsa de recursos estratégias para a gerir, estamos a aprender e todos a sofrer com esta privação de liberdade, tempo, pessoas, afetos”, diz. 

Pedir ajuda (e estratégias) para dar a volta

País, famílias e empresas podem adotar estratégias para tentar minimizar o impacto desta realidade. Magda Gomes Dias considera que quem está na liderança de uma empresa ou equipa, deverá falar individualmente com a equipa e perceber em que estado é que as pessoas estão, avaliar a situação, ouvir o tom de voz do colaborador, e perceber que se está difícil, nunca desvalorizando, mas sugerindo que se procure ajuda.

Por outro lado, e se os pais estiverem já em situação de 'burnout', “não devem aguentar porque sim”, diz. “Não faz sentido vivermos uma vida miserável, sobrecarregada, difícil. Vamos ficar mais tensos, mais nervosos, mais angustiados, mais tristes, mais ansiosos, é isso que vai acontecer. Por outro lado, a relação da família vai piorar. Quando chegamos a este estado, isto é, quando é diagnosticado um 'burnout', e há de facto stress contínuo, há demasiado tempo, a própria pessoa já não tem energia, e vai perdendo a capacidade se renovar e terá mesmo de pedir ajuda”. A rotina e organização não serão suficientes.

Recorde-se que, consciente destas dificuldades, o Governo socialista liderado por António Costa decidiu criar um apoio para os pais de crianças que frequentem até ao primeiro ciclo do ensino básico (até ao 4.º ano, o que, em alguns casos, significa que as crianças têm até 10 anos) ou com incapacidade superior a 60% clinicamente comprovada que se encontrem em teletrabalho (e que até agora não estavam abrangidos), podendo optar por manter-se em trabalho remoto ou requerer o apoio para garantir a manutenção de rendimento às famílias afetadas pela suspensão temporária de atividades letivas presenciais. A partir da próxima segunda-feira, dia 15 de março de 2021, as crianças começam a voltar à escola. Mas de forma faseada, primeiro reabrem as creches e o primeiro ciclo. Todas as outras continuam a ter aulas virtuais em casa, e regressam apenas nas datas determinadas pelo calendário oficial, aprovado ontem em conselho de ministros. Por outro lado, o Executivo decidiu que o teletrabalho se mantém obrigatório, sempre que possível.

A fatura do confinamento: famílias à beira de um ataque de nervos e profissionais afetados
Foto de Ketut Subiyanto no Pexels

Para tentar evitar chegar a este estado limite, Cristina Nogueira da Fonseca diz ser fundamental criar momentos distintos focados na qualidade das relações, “espaço para que as crianças possam brincar sozinhas, espaço para que possa brincar com elas e um momento para os pais, seja ler, beber café, ouvir música, treinar, isolar-se o que ajudar a aumentar o manancial de emoções positivas”. “Temos de parar de deixar para segundo plano, o que é de primeiro plano. O auto-cuidado é uma urgência nesta fase”, relembra. “Durante o dia, se ambos os elementos do casal estiverem em casa, alternem entre o tempo para estar atento aos filhos e o tempo para que o outro faça o que o irá fazer sentir-me melhor”, aconselha ainda.

Para a especialista é igualmente importante continuar “a nutrir as relações, quer por telefonemas, vídeochamadas, cartas, mensagens, urgente que procuremos as pessoas que nos energizam, que nos acolhem e que nos ouvem”. “Estas relações irão ajudar-nos a sentir que não estamos sozinhos e se forem baseadas na honestidade, irão mostrar-nos que não é uma questão de incompetência ou falta de habilidade, mas sim de circunstância”, conclui.

Ver comentários (0) / Comentar

Para poder comentar deves entrar na tua conta

Publicidade