Senhorios só podem exigir aos inquilinos o pagamento antecipado de duas rendas mais dois meses de caução. Mas nem sempre é assim.
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Contratos de arrendamento
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A criatividade (também) faz parte dos negócios imobiliários. E para evitar situações de incumprimento, conseguir liquidez para enfrentar gastos relacionados com impostos, créditos ou outras despesas com a manutenção dos imóveis, há proprietários a pedir vários meses de rendas adiantadas, alguns até ao valor equivalente a um ano, no momento de fechar um novo contrato de arrendamento. Em troca, alguns destes senhorios oferecem um desconto no total a pagar pelos inquilinos, que se tiverem fundos de reserva para dar este passo se sentem tentados a aceitar o acordo, devido aos preços das rendas em alta, num contexto em que a procura continua a superar a oferta, em termos medianos.

Mas será que esta prática - habitual de forma profissionalizada em mercados como os EUA ou Austrália, onde se chegam a cobrar até três anos de rendas por antecipado, e que começa a despontar também em Espanha - é já tendência em Portugal? E o que diz a lei? O idealista/news tenta dar resposta a estas e outras perguntas, com fundamento jurídico e testemunhos de quem anda no terreno a arrendar casas.

Quanto custa arrendar casa em Portugal?

Antes de mais importa fazer um pequeno enquadramento que mostra como arrendar casa em Portugal é cada vez mais difícil e caro em Portugal, apesar de haver interessados. Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que o número de novos contratos celebrados a nível nacional está a subir (0,9% num ano, no primeiro trimestre de 2024 face ao período homólogo), acompanhando o aumento das rendas (10,5% durante o mesmo espaço temporal), que se fixaram em 7,46 euros por metro quadrado (euros/m2). 

Os dados do índice de preços do idealista apontam para o mesmo cenário: em agosto, os preços das casas para arrendar em Portugal aumentaram 6,5% face ao mesmo mês no ano anterior. Com esta evolução, arrendar casa passou a ter o custo mediano de 16,3 euros/m2. 

E o pior ainda estará para vir, visto que em 2025 os senhorios podem aumentar o valor das rendas até 2,16%. Isto porque o INE já confirmou que nos últimos 12 meses até agosto a variação média do índice de preços, excluindo a habitação, foi de 2,16%, sendo este o valor que serve de base ao coeficiente de atualização anual das rendas para o próximo ano, ao abrigo do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU).

A provar que a procura por casas para arrendar está em alta, apesar das rendas praticadas e de se começar a verificar algum ajustamento no tempo de colocação dos imóveis, está o facto de os anúncios de casas no idealista terem recebido (em média), no segundo trimestre, 32 contactos antes de serem retirados. Ou seja, há 32 famílias interessadas por cada imóvel no mercado.

Arrendar casa em Portugal
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Pagar rendas adiantadas: o que diz a lei?

Por lei, quantas rendas pode um senhorio pedir adiantadas ao inquilino, além da caução? Em resposta a esta pergunta, Márcia Passos, sócia contratada e coordenadora de imobiliário da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, diz que “o limite legal de rendas adiantadas é de dois meses”. “O que poderemos transmitir, da ampla experiência que temos no mercado imobiliário, é que, em regra, os senhorios solicitam o pagamento de duas rendas adiantadas na celebração do contrato de arrendamento”, acrescenta.

Patrícia Boavida, advogada associada sénior na Belzuz Abogados, esclarece que houve uma alteração legislativa recente que mudou as regras: “Até 2023, os proprietários podiam receber até cinco meses de renda no início do contrato. No entanto, com o Orçamento do Estado de 2023 (OE2023) essa regra foi modificada, limitando o pagamento antecipado a dois meses de renda. A mesma alteração legislativa também introduziu um teto para o valor da caução, que agora não pode exceder o equivalente a dois meses de renda”.

"O senhorio só pode exigir o pagamento antecipado até dois meses de renda e, como caução, o valor equivalente a dois meses de renda"
Patrícia Boavida, advogada associada sénior na Belzuz Abogados

Significa isto, então, que “o senhorio só pode exigir o pagamento antecipado até dois meses de renda e, como caução, o valor equivalente a dois meses de renda”, explica a advogada, sustentando que o Artigo 1076.º do Código Civil português – “é uma norma imperativa e não pode ser afastada por acordo entre as partes” – é claro sobre este tema :

  1. "O pagamento da renda pode ser antecipado, havendo acordo escrito, por período não superior a dois meses;
  2. As partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das obrigações respetivas, até ao valor correspondente a duas rendas".

Vantagens e desvantagens de pagar mais rendas no início

Quando questionadas sobre as vantagens e desvantagens deste ‘modus operandi’ para senhorios e inquilinos, as advogadas consideram que há dois lados da mesma moeda.

A favor dos senhorios está o facto de o pagamento de rendas antecipadas e a prestação de caução “oferecem segurança financeira, garantindo o cumprimento das obrigações do inquilino e a cobertura de eventuais danos no imóvel”, refere Patrícia Boavida. “Já para o inquilino, a prestação de caução pode facilitar a negociação do contrato, oferecendo ao senhorio uma garantia adicional e, em alguns casos, permitindo condições mais favoráveis”, explica. 

No campo das desvantagens, do lado dos arrendatários, o valor a pagar inicialmente “pode ser financeiramente pesado, dificultando o acesso ao arrendamento”. “Já para o proprietário/senhorio, apesar da segurança oferecida, a legislação limita o valor da caução e o número de rendas antecipadas, o que pode reduzir a proteção financeira em caso de incumprimento ou danos significativos”, argumenta. 

“As rendas pagas terão de corresponder sempre ao uso que o inquilino faz ou pode fazer do imóvel que lhe foi entregue pelo senhorio a título de arrendamento"
Márcia Passos, sócia contratada e coordenadora de imobiliário da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados

Uma coisa é certa, “as rendas pagas terão de corresponder sempre ao uso que o inquilino faz ou pode fazer do imóvel que lhe foi entregue pelo senhorio a título de arrendamento”, lembra Márcia Passos.

A especialista alerta ainda para o facto de a lei penalizar os senhorios que cobram mais rendas que as permitidas na legislação em troca, por exemplo, de um desconto no montante a pagar mensalmente. “A situação exposta não tem enquadramento legal, pelo que, a ser praticada, configura uma violação da norma relativa ao pagamento das rendas e à possibilidade do seu adiantamento. (…) Tendo sido revogado o RAU (Regime de Arrendamento Urbano), não terá sido revogado o DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, diploma que o aprovou e no qual consta, entre outros elementos, que ‘os senhorios que recebam rendas superiores às fixadas na lei (…) cometem crime de especulação (...) [artigo 14.º]'", conclui. 

O dia a dia mostra, no entanto, que muitas vezes é o próprio mercado que "dita as regras" e que nem sempre os senhorios cobram aos inquilinos o pagamento antecipado de rendas e cauções previstos na lei. É o caso, por exemplo, de Sofia Neves (nome fictício), que vive em Vila Nova de Famalicão com o namorado. "Quando estava à procura de uma casa para arrendar, em 2019, não havia oferta a preços acessíveis. Até que surgiu uma casa para arrendar por um preço mais em conta. E tinha duas opções: ou pagávamos a renda mais caução ou pagávamos seis meses de renda adiantada (mais caução), o que nos deu margem para negociar com o senhorio e ter um desconto de 25 euros na renda mensal. Como tínhamos algumas poupanças, decidimos avançar para beneficiar desse desconto durante todo o contrato de arrendamento", conta.

Rendas das casas em Portugal
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A visão das mediadoras imobiliárias

E será que, no dia a dia, o normal é os senhorios pedirem aos inquilinos, no máximo, o pagamento antecipado de até dois meses de renda, bem como uma caução equivalente também a duas mensalidades? 

“A prática de mercado é uma renda antecipada e duas rendas de caução. Em alguns casos excecionais, os senhorios solicitam um número superior de rendas antecipadas, particularmente quando não há fiador”, começa por dizer ao idealista/news Ricardo Sousa, CEO da Century 21 Portugal, sublinhando que “não é uma prática comum” no país os senhorios cobrarem mais rendas inicialmente (no primeiro valor a pagar) com o argumento de poderem, depois, baixar o valor da renda.

"(...) O pagamento de múltiplas rendas iniciais pode ser um fator dissuasor para muitos inquilinos, especialmente aqueles com orçamento limitado. Isso pode levar à escolha de imóveis com condições de entrada mais acessíveis"
Ricardo Sousa, CEO da Century 21 Portugal

O responsável considera, de resto, que o facto de ser solicitada mais que uma renda (além da caução) no início do contrato pode levar potenciais inquilinos a não arrendarem o imóvel em causa? “Sim, o pagamento de múltiplas rendas iniciais pode ser um fator dissuasor para muitos inquilinos, especialmente aqueles com orçamento limitado. Isso pode levar à escolha de imóveis com condições de entrada mais acessíveis”, responde.

Opinião diferente tem Beatriz Rubio, CEO da Remax Portugal: “Não nos parece, até porque é uma prática comum em Portugal há muitos e longos anos, pelo que é do conhecimento geral de qualquer inquilino que caso pretenda arrendar um imóvel lhe poderá ser exigida mais que uma renda e uma caução. É certo que há casos extremos de alguns inquilinos que não possuem qualquer margem financeira e que por isso não podem arrendar o imóvel, mas são casos relativamente raros”. 

"Não são raras as situações em que é o inquilino que sugere adiantar algumas rendas e com isso consegue uma redução do valor das rendas, pelo que se os senhorios o fizerem não será de modo algum estranho. Se é aliciante ou não, depende das situações em que os inquilinos se encontram e dos próprios valores em causa (...)"
Beatriz Rubio, CEO da Remax Portugal

No caso dos contratos mediados pela mediadora, assegura a responsável, “em muitas das situações, os senhorios solicitam a renda inicial e mais duas que servem como caução”, sendo que “as condições podem variar conforme o acordo entre as partes e o que for estipulado no contrato de arrendamento”.

Nesse sentido, afirma, “não são raras as situações em que é o inquilino que sugere adiantar algumas rendas e com isso consegue uma redução do valor das rendas, pelo que se os senhorios o fizerem não será de modo algum estranho”. “Se é aliciante ou não, depende das situações em que os inquilinos se encontram e dos próprios valores em causa. Nalguns casos sim, poderá ser aliciante, mas noutros acreditamos que não”, remata.

O que dizem inquilinos e proprietários de Lisboa?

O idealista/news ouviu também o que têm a dizer sobre este tema duas das associações mais ativas no setor, a Associação Lisbonense de Proprietários (ALP) e a Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL).

Diana Ralha, diretora da ALP, que faz a gestão de património de mais de 6.500 arrendamentos, confirma que estão a ser exigidos nos novos contratos geridos pela associação a renda do mês, uma renda adiantada e o equivalente a um mês de caução. “Ou seja, duas rendas (sendo que apenas uma é adiantada) mais caução, sendo que poderia pedir-se até duas cauções”, conforme consta na lei.  

Paralelamente, adianta a responsável, “há cada vez mais senhorios que, cumulativamente, avançam para a subscrição do seguro perda de rendas da ALP, que garante o pagamento das rendas, em caso de incumprimento, durante um ano, assistência jurídica e atos de vandalismo”. “O prémio anual é 4,5% do valor da renda - que agora já pode ser abatido em sede de IRS. É um custo que acaba por ser mais um investimento em tranquilidade e garantia de rentabilidade dos imóveis”, justifica. 

"Pende sobre o arrendamento um enorme ‘prémio de risco’. Um senhorio só pode começar a instruir um despejo a partir do terceiro mês de incumprimento – na prática, com as comunicações necessárias, passam a quatro meses"
Diana Ralha, diretora da Associação Lisbonense de Proprietários

Salientando que a alteração legislativa realizada no âmbito do OE2023 (já mencionada em cima) “veio sobretudo encurtar ainda mais o mercado e prejudicar quem procura habitação no arrendamento com maior expressão, os jovens e a população imigrante”, Diana Ralha considera que “pende sobre o arrendamento um enorme ‘prémio de risco’”. “Um senhorio só pode começar a instruir um despejo a partir do terceiro mês de incumprimento – na prática, com as comunicações necessárias, passam a quatro meses. Ou seja, as duas rendas e duas cauções servem também para essa eventualidade. Depois, um despejo pode demorar um, dois, três anos, mantendo-se o arrendatário incumpridor no imóvel (com total impunidade)”, desabafa.

Casas para arrendar em Portugal
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Entregar até 12 rendas “é prática corrente”

Do lado da AIL, a direção da associação aponta também para o disposto o Artigo 1076.º do Código Civil (ver em cima), mas indica que, “na generalidade, as exigências dos senhorios são superiores”, ou seja, são pedidas mais que duas rendas e duas cauções. “A legislação que regulamenta a relação entre partes não é cumprida pela parte mais forte”, lamenta.

A direção da associação de inquilinos vai mais longe nas críticas: “A antecipação de rendas está dependente da oferta disponível, dos humores e interesses dos senhorios e das disponibilidades dos inquilinos. Por isso, entregar desde duas até 12 rendas é prática corrente na ‘celebração dos novos contratos de arrendamento’, sendo de sublinhar que na maioria dos casos são celebrados pelo prazo de um ano e não renováveis”.

"A antecipação de rendas está dependente da oferta disponível, dos humores e interesses dos senhorios e das disponibilidades dos inquilinos. Por isso, entregar desde duas até 12 rendas é prática corrente na ‘celebração dos novos contratos de arrendamento’, sendo de sublinhar que na maioria dos casos são celebrados pelo prazo de um ano e não renováveis”
Direção da Associação dos Inquilinos Lisbonenses

Numa coisa ALP e AIL estão em aparente sintonia, na necessidade de regular e (bem) fiscalizar o setor. “É necessário uma grande reforma de tudo o que está ligado ao arrendamento: a legislação (há diplomas dispersos que se contradizem), a fiscalidade (abolir a herança do Bloco de Esquerda que criou o AIMI), os problemas estruturais (como o congelamento de rendas) e a Justiça em si”, comenta Diana Ralha. 

Já a direção da AIL entende que “o descrédito no arrendamento, visto como um subproduto de utilização e solução para habitação”, resulta sobretudo das “más políticas e de muito más soluções”, sendo necessário haver “investimento público em habitação”.  

Em jeito de conclusão, os responsáveis da associação de inquilinos consideram que Portugal tem “um mercado de arrendamento urbano, habitacional e não habitacional, que urge regular, registar e fiscalizar enquanto atividade económica (uma prestação de serviços da propriedade a quem dela necessita), dinamizar, estabilizar e credibilizar, para que cumpra a sua função social que, indubitavelmente, é de enorme relevância para a sociedade”. 

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