
“A reabilitação urbana tem sido, em todo o país, o motor da transformação dos centros urbanos, independentemente das consequências diversas que ocorreram”. A garantia é dada pela presidente da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Património (APRUPP). Mas nem tudo são boas notícias, visto que “o objetivo de tornar a reabilitação urbana como um veículo para preservar o património e os centros antigos (…) tem encontrado obstáculos, nomeadamente ao nível da legislação”. “Continuamos sem ter uma definição correta na lei do termo ‘reabilitação’, que seja a mesma nos diferentes decretos lei”, lamenta Alice Tavares, em entrevista ao idealista/news.
Entre os vários temas abordados na entrevista, que pode ser lida em baixo na íntegra, estão também a crise na habitação, os preços das casas e a necessidade de agilizar processos de licenciamento – o novo simplex urbanístico entrou em vigor esta segunda-feira (4 de março de 2024) – e de reduzir o IVA para 6% em todas as intervenções de reabilitação, e não apenas nos imóveis localizados em Áreas de Reabilitação Urbana (ARU).

A APRUPP foi fundada em 2012. Que balanço faz da atividade da associação? O “papel” que a APRUPP desempenha no setor imobiliário foi ganhando força com o passar dos anos?
A APRUPP foi fundada em 2012, no Porto, sendo constituída sobretudo por técnicos e investigadores ligados à reabilitação e/ou ao património (classificado e não classificado), desde arquitetos, engenheiros, conservadores restauradores, gestores, empresários, sociólogos e também por pessoas que se interessam sobre estes temas. Na altura, a realidade portuguesa era manifestamente diferente, os centros históricos ou urbanos estavam abandonados e com várias áreas devolutas onde a segurança era um problema, o investimento na reabilitação era diminuto, a formação em reabilitação não era suficiente, entre outros aspetos. A situação era crítica, em sentido oposto ao europeu que apostava na reabilitação e na preservação do património, tendo isto motivado a criação da APRUPP, entre outros aspetos.
O balanço destes 11 anos é muito positivo, de uma associação mais focada nos problemas do Porto na fase inicial, progrediu para uma que se assume como nacional e tem em curso iniciativas internacionais. A APRUPP tem vindo a desempenhar o papel de massa crítica em relação ao setor imobiliário, acompanhando a sua evolução, identificando as melhorias a realizar a vários níveis, desde a legislação, aos modelos de construção, aos currículos formativos e à interoperabilidade dos diferentes agentes, nomeadamente entre as entidades gestoras/proprietários e os técnicos, entre a comunidade científica e a comunidade técnica, mas também entre técnicos e municípios ou ordens profissionais. Atualmente confronta-se com um investimento que descaracteriza o património, quando o nível cultural é baixo.
Uma das finalidades da APRUPP passa pela promoção e divulgação do “conceito de reabilitação urbana como principal veículo para a salvaguarda da identidade e valorização do património construído, a redução das assimetrias sociais e a promoção da participação dos cidadãos”. O objetivo tem sido alcançado?
O objetivo de tornar a reabilitação urbana como um veículo para preservar o património e os centros antigos, alavancando a qualidade da reabilitação e com isso a qualidade de vida, tem encontrado obstáculos, nomeadamente ao nível da legislação. Continuamos sem ter uma definição correta na lei do termo “reabilitação”, que seja a mesma nos diferentes decretos lei, o que deu cobertura a um extraordinário uso da demolição integral ou da manutenção apenas da fachada, como modus operandi, inserido no conceito “reabilitação” o que é caricato. Levamos quase 30 anos de “fachadismo”, com um crescimento exponencial desde 2015, com os consequentes efeitos negativos de produção crescente de resíduos de construção, com impacto ambiental, uma perda de património corrente não classificado sem controlo, sem que isso tenha ainda tido a devida reflexão pelos legisladores.
"O objetivo de tornar a reabilitação urbana como um veículo para preservar o património e os centros antigos, alavancando a qualidade da reabilitação e com isso a qualidade de vida, tem encontrado obstáculos, nomeadamente ao nível da legislação"
Salvaguardando-se a única tentativa positiva de introduzir princípios para a reabilitação do edificado habitacional, que foi o Decreto Lei 95/2019 de 18 de julho, após um período de debate alargado através do projeto Reabilitar como Regra e que introduz os princípios de “proteção e valorização do existente”, de “sustentabilidade ambiental” e ainda o muito importante “princípio da melhoria proporcional e progressiva”. Este Decreto Lei teve associado um conjunto de portarias relevantes, nomeadamente do ponto de vista estrutural e de resistência sísmica, sendo representativas de um avanço legislativo nestes campos. No entanto, não houve a coragem para dar continuidade ao trabalho que foi desenvolvido, incluindo a divulgação e promoção de um guia de intervenção de reabilitação: o Guia FNRE, que foi desenvolvido com a comunidade científica e técnica coordenado pela Fundiestamo.
Que importância tem tido a reabilitação urbana, por exemplo, na regeneração das cidades (nomeadamente de Lisboa e Porto)?
A reabilitação urbana tem sido, em todo o país, o motor da transformação dos centros urbanos, independentemente das consequências diversas que ocorreram. A promoção por via legislativa dos Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano (PEDU), a definição das Áreas de Reabilitação Urbana (ARUs) e a sua operacionalização favoreceu em vários casos o debate em torno do que no futuro deveria ser promovido em termos de reabilitação urbana e qual a área definida para esse efeito. Poderia ter sido um momento de forte participação pública e da constituição de estratégias que chegassem ao cidadão comum e à melhoria das suas condições de vida e de mobilidade. [Mas] o que se veio a assistir a seguir foram modelos para uma implementação rápida, com retorno rápido do investimento, que não tiveram em conta em muitos casos os residentes de origem, obrigando-os direta ou indiretamente ao abandono do local onde viviam (gentrificação), onde o equilíbrio de funções nas diferentes áreas dos centros antigos não evoluiu, instalando-se a monofuncionalidade do turismo e pouco mais.
"A reabilitação urbana tem sido, em todo o país, o motor da transformação dos centros urbanos, independentemente das consequências diversas que ocorreram (...) O consumo de recursos financeiros do país sobretudo concentrados em Lisboa, mas também no Porto (...), fez parar a construção no resto do país, mas não nessas duas cidades"
Mas existiram também aspetos positivos de investimento em espaço público, alguns municípios aproveitaram para a melhoria significativa da mobilidade e mais recentemente alguns investiram no parque habitacional público e nas áreas urbanas envolventes para melhor integração na cidade, com efeitos positivos do ponto de vista social e de qualidade da vida urbana, contrariando estigmas sociais.
Lisboa e Porto apresentaram mais cedo medidas de transformação dos centros antigos, através da constituição das Sociedades de Reabilitação Urbana (SRU), com aspetos positivos ao nível da dimensão das áreas reabilitadas e negativos do ponto de vista da proliferação do “fachadismo” e gentrificação com a crescente especulação imobiliária, o afastamento da classe média dos centros urbanos, com preços de transação ou de arrendamento incomportáveis para os salários médios.
Há ainda a referir um aspeto muito relevante, que é o consumo de recursos financeiros do país sobretudo concentrados em Lisboa, mas também no Porto, perfeitamente visível no período da pandemia, que fez parar a construção no resto do país, mas não nessas duas cidades.

Muitos players do setor consideram que muita coisa mudou nos últimos anos e que também por isso Lisboa, por exemplo, ficou mais bonita, agradável e atrativa, tendo despertado o interesse dos investidores imobiliários. Partilha desta ideia?
Em primeiro lugar é preciso perguntar para quem a cidade ficou mais bonita? Qual foi o preço a pagar em termos de residentes e do acesso destes à habitação? Para que áreas da região Metropolitana tiveram de ir viver? A cidade está mais agradável para os visitantes e para os que desenvolvem atividades ligadas ao turismo, restauração, cultura ou algum nível de internacionalização. Mas a atratividade de uma cidade não pode ficar dependente da flutuação permanente da população. Com o nível de financiamento que Lisboa teve/tem e que mais nenhuma região do país, ou conjunto de cidades, teve/tem, seria muito grave não se verem melhorias. A coesão territorial ainda não atingiu níveis aceitáveis no país. Temos de reforçar a atratividade de regiões do interior e do centro litoral e não apenas de Lisboa.
"Temos de reforçar a atratividade de regiões do interior e do Centro Litoral e não apenas de Lisboa"
Haverá alguma relação entre este fator e a subida dos preços das casas no país, sobretudo em Lisboa e Porto? Porquê?
A subida de preços das casas já é expectável desde pelo menos 2015, quando se começou a verificar o modelo de “regeneração” que se estava a implementar (numa fase inicial sem monitorização) sem controlar efeitos, muito ancorado na especulação imobiliária e no turismo. Não se pode concentrar o poder político e de decisão em Lisboa, concentrar o financiamento e a maior facilidade de acesso ao mesmo aí e não esperar que haja um êxodo da população para Lisboa e Porto. Mas não é apenas o desequilíbrio ao nível da coesão territorial o único fator a aumentar o preço das casas com a maior procura nos grandes centros. Existem outros fatores. Há um desajuste entre o valor atribuído pela oferta e o valor que o consumidor consegue pagar.
"O que se constrói e reabilita atualmente é para a classe alta, quer seja estrangeira quer portuguesa e esse mercado está em ascensão. Para se resolver o problema da habitação tem de se atuar a vários níveis, integrando nessas medidas a conciliação com as necessidades da imigração, dos estudantes universitários, das famílias monoparentais, que na maioria têm menos capacidade aquisitiva"
O que se constrói e reabilita atualmente é para a classe alta, quer seja estrangeira quer portuguesa, e esse mercado está em ascensão. Para se resolver o problema da habitação tem de se atuar a vários níveis, integrando nessas medidas a conciliação com as necessidades da imigração, dos estudantes universitários, das famílias monoparentais, que na maioria têm menos capacidade aquisitiva. Ou seja, em primeiro lugar são necessárias medidas que conheçam o perfil do consumidor e sejam estruturantes. A colocação do cidadão na posição de “sem-abrigo” perante a legislação e ter por isso incentivos para ter acesso a habitação não é a solução.
A falta de oferta de casas no mercado, para responder à procura, é um dos problemas estruturais de Portugal. A reabilitação continua a ser uma resposta viável a este nível?
A falta de oferta de casas no mercado só existe nos grandes centros e cidades do litoral, se formos para o interior do país existem várias casas a preços acessíveis. O modelo de desenvolvimento de Portugal é que coloca este problema na situação em que está. A reabilitação urbana pode ser uma resposta viável para fazer face a este problema, dada a quantidade de edifícios devolutos que ainda existem. Para este efeito é necessário fazer algumas alterações ao nível dos Planos Diretores Municipais (PDM) que dê de forma muito clara orientações que impeçam o aumento exponencial da densidade de construção concentrada no centro urbano, por forma a controlar a especulação imobiliária e dessa forma aumentar a possibilidade de atratividade noutras áreas da cidade, não concentrando também os problemas de mobilidade e de exclusividade de funções dedicadas ao turismo. Ou seja, se o investimento for mais disperso e criar polos atrativos em mais regiões da cidade, ou área metropolitana, o efeito será positivo e mais duradouro.
"A falta de oferta de casas no mercado só existe nos grandes centros e cidades do litoral, se formos para o interior do país existem várias casas a preços acessíveis. (...) A reabilitação urbana pode ser uma resposta viável para fazer face a este problema, dada a quantidade de edifícios devolutos que ainda existem"
Tem de se olhar para a habitação no território como as grandes cidades olham a concorrência entre si, oferta multifacetada e âncoras de desenvolvimento diversas e mais transversalmente acessíveis. Mas é um problema complexo que exige medidas convergentes de vários ministérios, sendo desaconselhável medidas que:
- Gerem a desconfiança dos proprietários e investidores (diminui a oferta):
- Se baseiam apenas em subsídios (não são estruturantes);
- Se baseiam no aumento de litígio entre municípios e privados (num país onde a Justiça demora a responder);
- Onde o Estado exige dos privados o papel social que é da sua inteira responsabilidade (a confiança é a maior garantia de sucesso de qualquer medida estruturante).

Têm noção de quantos imóveis foram reabilitados na última década em Portugal e quantos existem ainda com potencial de reabilitação, nomeadamente, para a área residencial?
Os dados [que existem, nomeadamente do INE] indicam que há em Portugal 35,8% de edifícios a necessitar de reparação, independentemente se estão devolutos ou não. Seria importante que as medidas de apoio à reabilitação não se restringissem às ARU, mas se destinassem a todos os edifícios com mais de 30 anos, e que todo o processo de reabilitação, desde o projeto de arquitetura/especialidades, até aos materiais e à intervenção de reabilitação, passassem a ter IVA de 6%.
Quais as vantagens e desvantagens da reabilitação face à construção nova? São concorrentes ou complementares?
A reabilitação e a construção nova não são concorrentes, porque a reabilitação em Portugal é diminuta, o que existe mais é reconstrução, ou seja, construção nova. A grande vantagem da reabilitação em relação à construção nova é que permite a otimização dos recursos existentes e a acessibilidade dos mesmos a mais pessoas. Permite ainda diminuir muito, quando bem realizada:
- O consumo de recursos naturais;
- A produção de resíduos;
- A produção de CO2 em todas as fases, desde a produção de materiais, transporte e execução.
"A reabilitação e a construção nova não são concorrentes, porque a reabilitação em Portugal é diminuta, o que existe mais é reconstrução, ou seja, construção nova"
Ou seja, do ponto de vista ambiental e de sustentabilidade devia ser uma prioridade. Na Europa, a percentagem das operações de reabilitação é manifestamente superior a Portugal. Por outro lado, igualmente importante, a reabilitação permite a preservação do património e a consolidação de áreas de forte atratividade para o turismo.
Sustentabilidade e descarbonização são termos que estão cada vez mais na ordem do dia, nomeadamente no setor imobiliário. O que está a mudar?
A sustentabilidade e descarbonização no setor imobiliário tornaram-se termos presentes no papel, a prática é outra. Como se pode falar em sustentabilidade e descarbonização quando o modelo de intervenção é a reconstrução e a construção nova? Avançamos muito no marketing.
Os atrasos nos processos de licenciamentos têm sido alvo de muitas críticas, com os players do setor a considerar que dificultam o aumento da oferta de habitação. Tem essa opinião?
Sim, em parte. Mas a lentidão dos licenciamentos também existe porque a legislação na área da construção tem decretos-lei contraditórios, definições incorretas, etc. Não havendo um código único da construção será difícil melhorar a velocidade de decisão dos licenciamentos. Por outro lado, existe em alguns casos falta de recursos humanos capacitados para o efeito nas entidades, ou recursos humanos que precisavam de formação ao longo da vida para acompanharem as contínuas alterações da construção. A burocracia e a falta de um modelo único nacional de submissão dos processos de licenciamento são outros fatores que justificam esta lentidão.
"A lentidão dos licenciamentos também existe porque a legislação na área da construção tem decretos-lei contraditórios, definições incorretas, etc. Não havendo um código único da construção será difícil melhorar a velocidade de decisão dos licenciamentos"

O novo simplex dos licenciamentos urbanísticos pode trazer mudanças?
Em Portugal temos uma relação com a legislação da construção bizarra. A Lei tanto surge com exigências acima do que é necessário e razoável como depois deita-se “tudo” a perder com simplificações que não refletem bem as consequências. A agravar a situação estes períodos de simplificação não são acompanhados de uma monitorização dos efeitos, ou seja, só se veem correções legislativas quando já é completamente insustentável permanecer nessa situação.
Como aspeto positivo [do simplex] poderemos ter a diminuição da burocracia, mas para isso resultar, sem efeitos negativos, precisaríamos de um código único da construção (que não temos) e uma legislação que assumisse a responsabilidade do Estado no processo. Assim, corremos o risco de ter problemas graves na responsabilização dos técnicos de forma eticamente condenável definida pela lei, da qualidade da construção diminuir por falta de controlo habilitado, já que são conhecidos os fracos meios que muitos dos municípios têm para acompanhar obras, e de haver falta de recursos humanos com competências para o efeito. Existem ainda riscos ao nível da segurança sísmica e estrutural, algo que já tinha sido criticado pela comunidade científica da última vez que tivemos processos simplificados.
"Em Portugal temos uma relação com a legislação da construção bizarra. A Lei tanto surge com exigências acima do que é necessário e razoável como depois deita-se “tudo” a perder com simplificações que não refletem bem as consequências"
De forma geral, não temos no simplex a correspondência da responsabilidade de cada agente interveniente de forma adequada e isso só pode aumentar o litígio e processos em tribunal e o cidadão ficará pior servido e desinformado.
O que é preciso ainda fazer para apostar mais e melhor na reabilitação Urbana e na proteção do património, nomeadamente em termos fiscais?
É fundamental conjugar as boas regras de reabilitação com a diminuição dos impostos, nomeadamente do IVA. Ou seja, não beneficiar do ponto de vista fiscal as reconstruções em ARU, mas alargar a todas as operações de verdadeira reabilitação, a habitações com mais de 30 anos, independentemente se estão em ARU ou não, o IVA a 6%, incluindo todos os projetos, aquisição de materiais e intervenção. Esta seria uma medida relevante para melhorar a proteção do património corrente, mas também aumentar a oferta de habitação, pois é um incentivo adequado ao investimento. O mesmo se aplica ao Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), que não devia abranger benefícios para intervenções que são reconstruções, mas devia ser alargado à manutenção dos edifícios antigos em centros antigos e às intervenções de reabilitação segundo boas práticas.
Como avalia a medida do Mais Habitação quanto aos imóveis devolutos?
Não apresenta medidas estruturantes e que gerem confiança no mercado. Outras medidas irão aumentar desnecessariamente o litígio e os processos em tribunal. O país precisa de medidas que envolvam mais que um ministério e com base em estudos mais aprofundados. A sociedade precisa de ser menos politizada para se debaterem os temas de forma adequada.
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