
O Estado é um dos maiores proprietários do país, estando muitos dos seus imóveis subtilizados e degradados. Afinal, ao longo dos últimos anos faltaram iniciativas para recuperar estes imóveis públicos devolutos e colocá-los no mercado residencial, apesar de a crise da habitação em Portugal se continuar a agravar a olhos vistos. Foi neste sentido que o Governo de Montenegro propôs criar um regime legal para que haja uma “injeção semiautomática de imóveis devolutos” públicos no mercado, sobretudo para habitação. Esta é uma medida “fundamental”, que tem potencial de subir a oferta de habitação, promover a reabilitação dos centros urbanos e até de reduzir o preço das casas, defendem os especialistas de mercado ouvidos pelo idealista/news. O grande desafio está na articulação da medida entre o Estado, as autarquias e os privados, apontam.
Uma das 30 medidas que o Executivo de Luís Montenegro anunciou no seu plano “Construir Portugal” diz respeito à “injeção semiautomática de imóveis públicos devolutos ou subutilizados” no mercado, para habitação ou outros projetos relevantes, o que será feito em conjunto com os municípios.
“Este é um regime novo, em que a iniciativa de base local permite acelerar, identificar e pôr, depois da recuperação, à disposição, quer para habitação, quer para outros fins públicos relevantes, tantas centenas de imóveis públicos do Estado que hoje estão parados, enquanto há tantas pessoas sem casa ou casas caras demais”, explicou o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, no final de maio.

Imóveis públicos devolutos transformados em casas é “fundamental”
A iniciativa de injetar imóveis públicos devolutos no mercado habitacional, depois de requalificados, é uma medida “positiva” e até mesmo “fundamental”, que só peca por tardia, avaliam em consenso os especialistas em imobiliário ouvidos pelo idealista/news. Esta será mais uma medida que ajudará a colocar mais casas no mercado e contribuirá para reabilitar zonas urbanas, consideram.
“A colocação urgente e quase automática de imóveis do Estado, que estejam devolutos ou subutilizados, para habitação, é muito positiva”, afirma Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), considerando “bastante relevante a aprovação deste regime legal”.
Esta é uma opinião também partilhada por Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção e Obras Públicas (AICCOPN): “A disponibilização de imóveis devolutos do Estado para o mercado para habitação é fundamental, urgente e consensual, uma vez que podem contribuir significativamente para aumentar a oferta de casas para habitação, especialmente em áreas urbanas onde a procura é elevada, para reabilitar os centros urbanos, e para reduzir o custo da habitação”.
Mas o seu efeito no mercado não será imediato, alerta Nuno Garcia, diretor-geral da GesConsult: “Esta medida que o Governo irá propor parece-me ter potencial para aumentar a oferta de casas e revitalizar áreas urbanas, embora num horizonte temporal a médio prazo, de três a cinco anos, na melhor das hipóteses”, disse ao idealista/news.

Esta iniciativa por parte do novo Governo acaba por “corrigir” os efeitos do polémico arrendamento coercivo de casas devolutas de privados, que “teria pouca expressão e refletia a incapacidade do Estado de gerir o seu próprio parque de imóveis”, considera Alfredo Valente, CEO da iad Portugal. Além de querer dar uma nova vida ao parque imobiliário público, Montenegro também vai pôr fim ao arrendamento coercivo previsto no programa Mais Habitação, do anterior Executivo socialista.
Embora considere a injeção de imóveis públicos degradados no mercado uma medida “positiva” em teoria, Rui Torgal, CEO da ERA Portugal, confessa estar “algo expectante para perceber como depois se irá materializar”. Para que “esta medida potencialmente inovadora” funcione e cumpra as “expectativas bastante positivas”, Clélia Brás, sócia e coordenadora de Imobiliário da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, acredita que terá de ser acompanhada de “medidas de fiscalização na sua devida implementação”.
Já Gonçalo Nascimento Rodrigues, Coordenador da Pós-graduação em Investimentos Imobiliários do Iscte Executive Education, confessa que as suas expectativas sobre os efeitos desta medida no mercado da habitação são “baixas”, devido à “inexistência de oferta pública no mercado nos últimos anos”. “Independentemente de quem governa, não tem sido propriamente uma prioridade a colocação de imóveis públicos no mercado como forma de aumento da oferta e de criação de um portfólio de habitação pública”, conclui, embora admita que esta medida é “absolutamente essencial” para colmatar o facto de haver um “peso muito reduzido de habitação pública” em Portugal.

Municípios vão ser porta de entrada para reabilitar imóveis devolutos e criar habitação – mas é desafio
O funcionamento e detalhes da injeção semiautomática de imóveis devolutos no mercado residencial (depois de reabilitados) só vão ser clarificados quando o Governo divulgar o regime fiscal desta medida, que está agora a preparar. Mas o ministro António Leitão Amaro já deixou algumas pistas. Desde logo, serão os municípios que terão, voluntariamente, de identificar os imóveis públicos devolutos ou subutilizados. Depois, terão de apresentar ao Estado, nomeadamente através da Estamo, um projeto de utilização “para um fim público que caiba dentro das atribuições do município e possa ser colocado em fruição pelas pessoas”. As autarquias podem avançar sozinhas ou em parcerias com promotores privados.
A articulação entre o Estado, os municípios e até os privados para colocar em prática esta medida afigura-se, segundo os mesmos especialistas, num grande desafio. “Qualquer um de nós sabe que muitas vezes ótimas medidas esbarram na sua implementação, dado que o seu sucesso implica uma articulação eficaz entre o setor privado, o Estado e os municípios, o que constitui um enorme desafio”, avisa Nuno Garcia, da GesConsult.
“Não duvidemos que o Governo, sozinho, não resolverá o problema da habitação em Portugal”, Alfredo Valente, CEO da iad Portugal
Também o CEO da ERA Portugal diz que “o entendimento entre o poder central e local nos temas da habitação não tem sido o ideal” ao longo dos quase 25 anos que trabalha no mercado. E, por isso, teme que “estes processos possam tardar em avançar, a menos que haja uma imposição efetiva do Governo”.
Para que tudo funcione de forma ágil, será necessário "lançar concursos públicos para operadores privados céleres” e que também as câmaras sejam rápidas nas aprovações, defende Rafael Ascenso, founder e partner na Porta da Frente Christie's, em declarações ao idealista/news.
“Não há dúvida que terá de existir uma articulação e organização entre todas as partes para que funcione”, considera Hugo Santos Ferreira, adiantando que “os promotores imobiliários, como especialistas em construção e em gestão deste tipo de imóveis, estão disponíveis para dar o seu contributo e criar projetos para rapidamente colocar mais casas no mercado para todos os segmentos”.

O que é preciso mais para que a disponibilização de imóveis devolutos crie mais habitação?
Além de o Estado, as autarquias e os privados terem de estar bem articulados para que esta medida dê nova vida a imóveis públicos devolutos, criando mais oferta de casas, os especialistas dizem ao idealista/news que há outros aspetos importantes que também devem ser considerados para que tudo funcione:
- Bolsa de imóveis públicos: “É essencial que o Governo disponibilize uma listagem de terrenos e imóveis, com georreferenciação, disponíveis para cedência a municípios ou a entidades privadas para aí serem realizadas as obras de reabilitação necessárias à sua conversão em habitação”, defende Manuel Reis Campos, considerando, por isso, “urgente a criação imediata da bolsa de imóveis públicos”.
- Alterar Planos Diretores Municipais (PDM): sobretudo nas cidades onde há mais falta de casas, permitindo aumentar as áreas urbanas para zonas sem qualquer utilidade. "Não é compreensível que existam manchas de terrenos classificados como ‘reserva agrícola’ no meio das cidades, onde há décadas que nada é cultivado e onde nem sequer é possível construir um jardim. A conversão destes terrenos não depende só das câmaras, precisa do consentimento dos organismos centrais”, afirma Rafael Ascenso, da Porta da Frente Christie's;
- Mais planeamento urbano e envolvimento das comunidades: “Temos aqui potencial para uma aposta mais séria no planeamento urbano e no estímulo à participação da comunidade local, de forma a garantir que os projetos são sustentáveis e atendem às reais necessidades dos residentes”, acrescenta o diretor-geral da GesConsult;
- “Criação de incentivos fiscais para os privados que tencionem proceder à reabilitação de imóveis a serem colocados no mercado imobiliário”, diz Clélia Brás, da PRA;
- Simplificar processos: “Será necessário estabelecer parcerias estratégicas e apostar na simplificação dos processos, na transparência e na desburocratização”, acredita Nuno Garcia;
- “Implementação de políticas de fiscalização e avaliação continuas do cumprimento de toda esta articulação púbico privada, com vista a assegurar o aumento da oferta do mercado da habitação”, acrescenta ainda a coordenadora de Imobiliário da PRA.

Além de colocar os imóveis públicos à disposição dos municípios para criar mais habitação, há outros usos alternativos que o Governo pode dar a estes edifícios degradados. Rui Torgal, da ERA Portugal, sugere que “o Estado poderá colocar os imóveis devolutos a preços acessíveis para incentivar os privados a comprá-los, reabilitá-los e explorá-los". "Algo similar a um acordo de concessão que certamente irá agilizar o processo de recuperação destes imóveis que, mesmo não ficado disponíveis para os clientes a preços acessíveis no imediato, a longo prazo poderão aumentar, de forma ativa, o parque habitacional público, contribuindo para ajustar os preços de mercado”, explica.
Esta é mais uma medida que poderá ajudar a melhorar o acesso à habitação em Portugal, mas que não terá impacto sozinha, lembra Gonçalo Nascimento Rodrigues. “Entendamos que não existe uma medida, 'per si', que vá contribuir para a melhoria na acessibilidade na habitação. Terão de ser várias, colocadas em prática em conjunto”, como é o caso do aumento dos salários, descida dos impostos para jovens e pessoas com menores rendimentos ou o apoio à compra da primeira casa pelos jovens (com a isenção do IMT e Imposto de Selo, por exemplo).
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