A habitação anda nas bocas do mundo e, hoje mesmo, o programa Mais Habitação vai estar no centro da agenda do país, ao ser discutido no Parlamento. Desenhado pelo Governo socialista de António Costa, foi apresentado, em março, como a solução para resolver a crise habitacional que se vive em Portugal, mas tem sido, desde então, alvo de fortes críticas e ataques a vários níveis, por parte de autarcas, players do mercado imobiliário, investidores, economistas e outros especialistas em habitação.
É o caso de Gonçalo Antunes, professor universitário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O investigador dedicado à habitação, em entrevista ao idealista/news, junta-se ao coro de vozes discordantes das medidas hoje em análise na Assembleia da República.
Reconhecendo o mérito dos apoios diretos às famílias para reduzir as taxas de esforço no arrendamento e no crédito habitação, o coordenador da Licenciatura em Geografia, Planeamento Regional e doutorado pelo Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da FCSH da Nova Lisboa, não acredita que, de resto, "o Mais Habitação vá mudar as políticas de habitação do ponto de vista transversal, porque não é nada reformista, nem nada estrutural, absolutamente nada". Na sua opinião é "um conjunto de medidas circunstanciais e algumas delas provisórias e temporárias, para responder às necessidades atuais", que não vai conseguir resolver os problemas de fundo no acesso à habitação em Portugal, que são a oferta e o preço das casas, face aos rendimentos e ao perfil de procura.
Este especialista em habitação, estudando a História do país e analisando os casos internacionais, está convencido que a solução para ter casas a preços acessíveis passa antes por apostar na criação de um mercado intermédio, que não existe em Portugal e está a funcionar em países da Europa Central e Ocidental desde há várias décadas, com provas dadas de sucesso.
"A habitação pública em Portugal está atualmente fora do alcance da grande maioria das pessoas, 98% recebem demais para ter direito a habitação social, mas também ganham pouco e têm grandes dificuldades para aceder ao mercado privado. E pelo meio não existe nada. E é por isso que esse mercado intermédio nos faz falta em Portugal. Poderia ser do terceiro setor, do movimento cooperativo, poderia ser do privado, poderia ser de entidades assistencialistas. Fosse, de quem fosse...", explica Gonçalo Antunes, nesta entrevista dada ao idealista/news, durante o SIL 2023, em Lisboa, que agora pode ser lida em detalhe, com pistas sobre como se pode atrair o investimento para esta área.
Portugal vive uma crise habitacional há vários anos. Como é que chegámos aqui?
Bem, vivemos um problema de crise habitacional desde sempre. Não começou agora. Atualmente, temos é um problema muito mediático, o que é normal, porque afeta toda a classe média e condiciona o acesso à habitação. Mas, na verdade, é preciso dizer que temos tido, ao longo da História do país, vários tipos de problemas de habitação. Alguns deles bem mais elementares, nomeadamente no que respeita à grande quantidade de população a viver nos chamados bairros de lata e de barracas, sem qualquer tipo de condições habitacionais. Este problema foi quase todo resolvido no final do século XX, mas ainda continua. Ou seja, o problema da habitação é persistente e vai-se alterando ao longo do tempo, vai-se adaptando às conjunturas, mas está sempre presente. E é por isso que é preciso procurar soluções estruturais e não respostas à pressa.
Com o contexto de alta inflação, taxas de juro a subir e elevados preços das casas para comprar e arrendar, face ao nível dos rendimentos, que diagnóstico faz então da situação da habitação, nos dias que correm?
Efetivamente, hoje em dia, existe um grande problema no acesso à habitação, e que é transversal à maioria das famílias. Deve-se, sobretudo, ao enorme desfasamento entre o custo das habitações, seja para comprar ou arrendar, e os rendimentos. Essa diferença tem vindo a crescer de forma bastante significativa, desde 2015, 2016, com o valor do metro quadrado (m2) a aumentar expressivamente em todo o país e, em particular, nos territórios mais pressionados, como as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, e o Algarve, sem o respetivo acompanhamento do nível de rendimentos.
O problema da habitação é persistente e vai-se alterando ao longo do tempo, vai-se adaptando às conjunturas, mas está sempre presente. E é por isso que é preciso procurar soluções estruturais e não respostas à pressa.
E é uma situação que afeta a quase todos aqueles que procuram casa, seja pela primeira vez, ou uma nova habitação para se mudarem. Toca em particular os jovens, porque estão em início vida profissional e, muitas vezes, têm empregos que são ainda precários, com rendimentos mais baixos e não têm poupanças, mas não só. É realmente um problema que afeta a maioria da população, desde quem está em idade ativa e de trabalho, mais jovens ou mais velhos, até aos reformados. A tudo isto, soma-se a inflação alta e o aumento das taxas de juro Euribor, que geram um problema acrescido para os que já acederam à habitação, anteriormente, e que agora veem subir as suas prestações da casa, bem como o custo de vida, agravando as taxas de esforço de forma bastante considerável.
E como perspetiva a evolução do acesso à habitação com as políticas públicas que agora estão em marcha?
O direito à habitação está na Constituição desde o primeiro dia, em maio de 1976. E veja-se o tempo que demorou a aparecer a Lei de Bases da Habitação, que só chegou em 2019. E eu não me acredito que o Mais Habitação vá agora mudar as políticas de habitação do ponto de vista transversal, porque não é nada reformista, nem nada estrutural, absolutamente nada. É um conjunto de medidas circunstanciais e algumas delas provisórias, temporárias e atabalhoadas, para tentar responder às necessidades atuais do problema enorme no acesso à habitação, devido ao tal fosso cada vez maior entre os nossos rendimentos e o preço das casas.
Efetivamente, hoje em dia, existe um grande problema no acesso à habitação, e que é transversal a à maioria das famílias. Deve-se, sobretudo, ao enorme desfasamento entre o custo das habitações, seja para comprar ou arrendar, e os rendimentos.
Mas julgo que estas políticas públicas vão ter um impacto muito reduzido. Se os valores do mercado se vierem a alterar, entrando em estagnação ou queda, será mais por razões conjunturais relacionadas com o aumento das taxas de juro da Euribor e da inflação, ou seja o funcionamento normal da economia, e não necessariamente devido a determinadas medidas do Mais Habitação.
Consegue identificar algumas medidas do Mais Habitação que possam vir a ter um efeito potencial positivo?
Há duas medidas que não afetam o mercado, mas sim a carteira das pessoas, nomeadamente o apoio no arrendamento e a bonificação no crédito habitação. Nestes casos, acredito que são benéficas e vão afetar positivamente a taxa de esforço das famílias, mas sem grandes implicações no mercado.
Vivemos um momento de urgência na habitação, em que as pessoas precisam de respostas agora. Como é que se revolve isto?
O problema das políticas de habitação é que quase todas demoram muito a apresentar resultados, a não ser que seja um controlo de rendas ou um impedimento de despejos, algo assim do género, que tem efeitos imediatos positivos para aquelas famílias, mas eventualmente negativos a médio e longo prazo para o mercado.
Se agora o Estado ou um município decidir que vai construir, esta construção, muito possivelmente, só vai ver a luz do dia daqui a três ou quatro anos. Porque são processos que demoram e é normal que demorem.
Olhando para países onde foram adotadas medidas similares às do Mais Habitação, há sinais de que o controlo de rendas está a levar a uma redução na oferta de casas para arrendar, com os senhorios a decidir colocar as casas à venda. Isto poderá acontecer em Portugal?
Sim, claro que pode vir a acontecer. Aliás, alguns estudos internacionais têm demonstrado que o número de casas disponíveis para arrendamento diminuiu e que, em simultâneo, numa correlação no tempo, o número de casas disponíveis para venda aumentou, o que pode significar que existiam anteriormente senhorios que tinham casas no mercado de arrendamento e ao verem as novas políticas, decidiram colocá-las no mercado de venda. Uma crítica que se faz às medidas que tentam controlar o mercado de arrendamento, seja através de controlos mais suaves ou mais fortes, com tetos de rendas e congelamentos, é exatamente essa diminuição efetiva nas casas que estão disponíveis para arrendar, porque, entretanto, são colocadas no mercado de venda.
Eu não me acredito que o Mais Habitação vá mudar as políticas de habitação do ponto de vista transversal, porque não é nada reformista, nem nada estrutural, absolutamente nada. É um conjunto de medidas circunstanciais e algumas delas provisórias e temporárias.
Um dos problemas mais críticos apontados por todos para a atual crise no acesso à habitação é a falta de oferta. Como é que se pode resolver esta situação?
Em Portugal temos um problema de oferta que é um pouco estranho. Somos o país da OCDE que tem mais habitações per capita, existem mais 2 milhões de habitações do que famílias. E então, pode perguntar-se: como é que um país neste cenário tem um problema de oferta de casas? Porque as habitações que estão no mercado, em determinado local e em determinado momento, são sempre insuficientes, aparentemente, face ao tipo de procura, fazendo aumentar os preços. Isto tem vindo agravar-se, também porque a procura já não é realizada apenas pelas famílias que aqui vivem.
Há ainda uma grande procura de estrangeiros, por exemplo de fundos imobiliários, que são entidades coletivas, mas também de estrangeiros a nível particular, como por exemplo reformados, nómadas digitais, vistos gold que existiram até recentemente, etc. Há um acumular de pressão no mercado... Já para não falar das habitações que, naturalmente, foram saindo ao longo dos últimos anos para entrar em serviços turísticos, como o Alojamento Local.
Em resumo, temos um problema de oferta num país que não o devia ter, porque tem muito mais habitações do que famílias, mas acontece que não estão localizadas onde, nem são o tipo de casas que o mercado quer e precisa. E esse problema de oferta não me parece que o Mais Habitação dê grande resposta, porque as medidas que visam colocar mais casas no mercado são um bocadinho aquilo que se costuma chamar o pensamento positivo. Ou seja, "pode ser que as casas saiam do Alojamento Local e vão para o arrendamento"... "Pode ser que as que estão devolutas vão para o arrendamento".. é um pouco pode ser que aconteça isso ou aquilo, mas na verdade não sabemos o que vai acontecer, realmente.
Acha portanto que o Mais Habitação não vai ajudar a colocar mais casas no mercado, como é prometido pelo Governo?
Eu duvido muito que se corrija a situação, porque para mudarmos o cenário atual, era preciso um aumento de oferta muito superior àquilo que me parece ser o potencial que está no Mais Habitação. Sobretudo, porque o aumento da oferta que precisamos é no mercado intermédio, algo que não existe em Portugal. Temos 2% da habitação pública e depois os outros 98%, grosso modo, em que é tudo particular, sejam as pessoas que vivem na sua própria casa, seja quem está no arrendamento, sendo que só 30% das famílias é que arrendam em Portugal. Não há um setor social da habitação.
Para mudarmos o cenário atual, era preciso realmente um aumento de oferta muito superior àquilo que me parece ser o potencial que está no Mais Habitação. Precisamos de um mercado intermédio, algo que não existe em Portugal. É um elo fundamental na habitação, e se já existe em vários países da Europa, com provas dadas, porque é que não pode ser aqui também?
Isto significa que a habitação pública está fora do alcance da grande maioria das pessoas, porque recebem demais para ter direito a habitação social, mas também ganham pouco e têm grandes dificuldades para aceder ao mercado privado. E pelo meio não existe nada. É por isso que esse mercado intermédio nos faz tanta falta em Portugal. Poderia ser do terceiro setor, do movimento cooperativo, poderia ser do privado, poderia ser de entidades assistencialistas. Fosse, de quem fosse...
Há muitos outros países na Europa Ocidental, Europa Central, onde existe este tipo de mercado e funciona. Ajuda, por exemplo, aos jovens que querem emancipar-se, que querem sair da casa dos pais, que querem formar família. É absolutamente normal na Holanda ou na Alemanha irem para essas habitações com preços acessíveis, que são do mercado intermédio.
Para resolver o problema da oferta de casas a preços acessíveis em Portugal defendo que seria extremamente importante potenciar este mercado intermédio, mais até do que o mercado normal. Voltamos ao tema dos rendimentos, toda a gente sabe que em Portugal os salários são muito baixos, uma enormidade de indivíduos que não ganha sequer 1.000 euros e, neste contexto, esse mercado intermédio é absolutamente fundamental.
Em Portugal precisávamos de um movimento cooperativo adequado à conjuntura atual, ou seja, de propriedade coletiva, apoiado pelo Estado, para colocar casas no mercado a preços acessíveis.
O que é que se pode fazer para fomentar esse mercado intermédio?
O movimento cooperativo construiu em Portugal muitas habitações nas décadas de 80 e 90. O problema é que tinha um método de funcionamento muito particular, que era construir para vender aos cooperantes de imediato. Não eram as chamadas cooperativas de propriedade coletiva, em que é a cooperativa que fica proprietária permanentemente das habitações e pode infinitamente ir fazendo um arrendamento acessível. As habitações que foram construídas nessa época, promovidas por cooperativas, e que passaram para os cooperantes, hoje em dia estão no mercado a valores relativamente normais.
Isto significa que agora precisávamos de um movimento cooperativo adequado à conjuntura atual, ou seja, de propriedade coletiva em que a propriedade permanecesse das cooperativas para arrendamento. Mas as cooperativas deste perfil enfrentam vários problemas no acesso ao crédito por parte dos bancos e precisam de apoios financeiros maiores do que aquelas até que se propõem vender de imediato. Essas, na verdade, funcionam quase como empresas de construção normais, com algumas diferenças, como é óbvio, mas o modelo acaba por não divergir muito. O que nós precisamos então é de apoiar essas cooperativas e esse terceiro setor para criar um mercado de arrendamento a preços acessíveis, que finalmente crie um mercado intermédio em Portugal.
E as autarquias que papel podem ter aqui?
Os municípios têm verbas do PRR para o fazer. Além das dotações para o Primeiro Direito, que é um programa para responder a situações urgentes, há dinheiro para criar programas de renda acessível, ou seja, para começar a criar também esse segmento intermédio, nesse caso, público.
Mas porque não colocar também os privados interessados em construir este tipo de habitações para arrendar a valores abaixo do mercado ou outro tipo de entidades? No fundo, todo o tipo de entidades que constrói habitação pode estar envolvido. Para isto não é preciso inventar a roda, basta aprender com quem já faz lá fora.
O mercado intermédio é um elo fundamental na habitação. E se já é em vários países da Europa, com provas dadas, porque é que não pode ser aqui em Portugal também? É óbvio que outros têm uma tradição e uma herança de décadas e décadas, mas é algo que temos de começar a incentivar a sério porque estamos num momento de grande crise habitacional.
Além das dotações para o Primeiro Direito, que são para responder a situações urgentes, os municípios têm verbas do PRR para criar programas de renda acessível, ou seja, para começar a criar também esse segmento intermédio, nesse caso, público.
Olhando para os casos internacionais, de que forma é que os privados podem ter um atrativo em participar no mercado com mais oferta de habitação acessível?
O movimento cooperativo é muito mais apto a esse tipo de construção. Mas é possível atrair os privados para habitação a preços acessíveis, com apoios fortes e estáveis do Estado, que garantam que um agente vai lucrar com aquela iniciativa, seja através de uma compensação fiscal, facilidades no acesso a terrenos, financiamento mais barato através de crédito bonificado, compra de materiais abaixo dos valores do mercado, etc.
Por exemplo, o terreno é um ónus muito grande no valor final da habitação e ter acesso a solos públicos, em direito de superfície, é algo relativamente comum neste tipo de operações e de empreendimentos noutros países. É logo uma enormíssima ajuda para que o valor das casas possa ser mais reduzido, relativamente ao mercado livre, porque não houve o custo da aquisição do terreno, que habitualmente é muito onerosa, retirando-se assim essa carga no preço final das habitações.
Também pode decidir-se que, quem vai construir um edifício destine uma percentagem dos apartamentos para colocar abaixo dos valores do mercado, um bocadinho no espírito do chamado zonamento inclusivo, e se não o fizer tem que dar contrapartidas ao município local. Isso pode acontecer, também é praticado a nível internacional e é uma das soluções.
É possível atrair os privados para habitação a preços acessíveis, com apoios fortes do Estado, que garantam que um agente vai lucrar com aquela iniciativa, seja através de uma compensação fiscal, facilidades no acesso a terrenos, financiamento mais barato através de crédito bonificado, compra de materiais abaixo dos valores do mercado, etc.
Além da dificuldade no acesso à habitação, vários estudos apontam a falta de qualidade das casas e de conforto térmico em Portugal...
A qualidade construtiva em Portugal é, tradicionalmente, um problema transversal a quase todos. Seja quem comprou mais barato ou mais caro, muitas vezes tem um problema de eficiência energética nas habitações. As casas são muito quentes no verão, muito frias no inverno, têm problemas de humidades... E por outro lado, falando de habitação indigna, existem milhares de famílias em Portugal que ainda vivem em casas abarracadas e em habitações sem qualquer tipo de dignidade habitacional, ou em espaços sobrelotados. Estima-se que possa haver entre 50 mil e 60 mil famílias a necessitar de uma nova habitação a curto prazo ou de reformas importantes.
Ou seja, temos um problema de habitação enorme, que vai desde o mais elementar, até grandes questões para o país como a natalidade e a demografia, passando por verdadeiros dramas familiares, com consequências sociológicas e psicológicas, além dos temas económicos e financeiros. E é por tudo isto que precisamos de políticas públicas fortes e sustentáveis no tempo.
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